As mudanças ocorridas na Europa no raiar do século XVIII provocaram profundas alterações nas relações sociais, políticas, econômicas, culturais que culminaram em rupturas significativas, especialmente, no campo ideológico. É nesse meio conturbado de incertezas e desesperanças que filósofos passaram a questionar a “ordem” social, os mandos e desmandos dos reis, a política unilateral, a falta de acesso ao conhecimento, seguidos por uma burguesia emergente que, aos poucos, ia descentralizando o poder dominado até então pelos monarcas e pela Igreja. Ganha força, então, o Iluminismo, com ideias esclarecedoras e questionamento sobre a posição do homem comum no processo social, como agente de mudanças e não uma mera peça de tabuleiro.
Foi a partir desse momento, a “Era das Luzes”, que os caminhos da vida europeia tomaram novos rumos, e na música não foi diferente. Fatos como a morte de Jean Baptiste Lully (1632-1687), que até então detinha o poder de chancela sobre toda a produção musical na França; a volta da corte para Paris, vinda de Versalhes, após a morte de Luís XIV (1638-1715); e a pressão sofrida pela corte por parte da burguesia, assim como os ideais iluministas e humanitários, acabaram por marcar o início de uma época revolucionária.
Um dos princípios da nova mentalidade que se instalava na Europa do século XVIII, apesar de contrária à Igreja e às monarquias, era acreditar que somente a verdadeira educação intelectual poderia libertar o ser humano, emancipando-o. Com isso, pessoas de todas as classes passariam a ter acesso à cultura e à educação, pois, para a emancipação do homem, não era preciso a sua submissão ? Igreja.
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi uma das principais referências do pensamento iluminista, que se intensificou a partir de 1760, influenciando profundamente os poetas e filósofos. Ele dizia que o ser humano esquecera a felicidade devido aos tantos obstáculos que enfrentava diariamente, sendo muito pouco o necessário para alcançar a felicidade.
Para a realização mais imediata dessa necessidade, novos meios e modelos de atividades foram surgindo. Na música, por exemplo, o abandono do contraponto foi marcante nesse momento, visto que era considerado algo sofisticado e, portanto, desnecessário. O contraponto aqui se refere à técnica de composição musical que consiste na sobreposição de várias vozes ou linhas de melodia, as quais apesar de conservarem a sua independência, estão integradas harmonicamente no conjunto, dando à peça uma dimensão harmônica vertical, além da dimensão melódica horizontal que cada voz possui.
O contraponto era considerado uma espécie de artefato antiquado, embora se saiba que sua prática ainda perdurou por todo o século XVIII, ainda que de forma acanhada. Era preciso uma comunicabilidade mais prática, mais direta com o público, em que as pessoas entendessem a música mesmo que não a tivessem que estudar profundamente. Nesse sentido, não se pode negar que a melodia dessa época passou a ser mais elaborada e privilegiada. O período musical entre 1720 e 1770 é conhecido como “Rococó” ou “Estilo Galante”.
Até o final do século XVII, a ópera italiana disseminou-se por toda a Europa. Na virada do século e com as profundas mudanças que vinham acontecendo em todas as esferas, este gênero saiu de um círculo muito restrito, da alta sociedade, e passou a satisfazer outro público. Com o emergente crescimento do comércio no sul da Itália, Nápoles foi a cidade que mais se desenvolveu e onde foram construídos muitos teatros para apresentações variadas, como o Teatro dei Fiorentini, com peças em dialeto toscano.
Os gêneros drama e comédia só passaram a ser tratados separadamente no século XVIII. Os precursores dessa separação foram Pietro Metastasio (1698-1782) e Apostolo Zeno (1669-1750). O primeiro foi o que mais abraçou a ópera séria, cujos compositores baseavam suas obras em histórias de antigos reis ou em deuses da mitologia. Para os italianos, a comédia tinha um sentido mais próximo do cotidiano. Seus personagens eram pessoas simples, comuns; os assuntos de que tratavam eram tipicamente simplórios, diferentes da ópera séria.
Durante as apresentações das óperas sérias, formais e carregadas de drama, houve a ideia de incluir, entre um ato e outro, uma pequena peça, de assunto cômico, chamado “intermezzo”, que era encenado em tempo mais curto, em linguagem local, ou dialeto, e que atraía a atenção de um grande público em teatros menores.
O compositor italiano Giovanni Batista Pergolesi (1710-1736), um jovem de 23 anos, então escreveu o “intermezzo” “La Serva Padrona” (“A Criada Patroa”) em 1733. O tema não era novo, mas alcançou notoriedade. Era uma espécie de entretenimento, colocado no intervalo de um ato a outro da ópera para segurar o público. Esse tipo de composição era formado geralmente por dois ou três personagens.
La Serva Padrona marcou de tal forma aquele momento que passou a ser apresentada em várias versões e a servir de modelo para contemporâneos, sendo considerada a primeira “opera buffa” a ganhar vida própria na história da música. Pela impressão humorística que causava no público, esse gênero foi-se notabilizando de tal forma que compositores de gerações posteriores alcançaram projeção com composições de “intermezzo”, baseados em “La Serva Padrona” de Pergolesi.
A ópera tem início nos aposentos de Uberto, um solteirão, que se queixa a seu criado Vespone, mudo, de Serpina, sua criada mandona. Há três horas espera que ela lhe traga chocolate quente. Serpina finalmente entra, sem o chocolate, batendo em Vespone. Exige respeito de Uberto, mas a cada palavra o irrita mais. Ele adoraria acabar com tal aflição, ao cantar a ária “Sempre in contrasti”:
Uberto pede a Serpina que lhe traga as roupas para sair, mas ela exige atenção durante o dueto “Stizzoso, mio stizzoso”:
Uberto implora então a Vespone que lhe encontre uma esposa, mesmo que se pareça com um monstro. Serpina dá a entender que ele devia casar-se com ela. Uberto protesta. Ela pergunta se não a acha atraente. Uberto diz que não repetidas vezes, enquanto ela retruca que sim. Na segunda parte, Serpina instrui Vespone: vão pregar uma bela peça, convencendo o patrão a casar-se com ela. Uberto entra, vestido para sair e confiante em que a “dona” da casa permitirá. Serpina diz a Uberto que certo “Capitão Tempestade” quer se casar com ela. Desculpa-se pelo comportamento anterior, mas informa que irá embora para viver com o marido no dueto “A Serpina penserete”:
Uberto não sabe ao certo se sente amor ou pena. Serpina volta com Vespone disfarçado, explicando que ele, seu pretendente, quer o dote: 4.000 coroas. Chocado com o valor, Uberto é informado de que a alternativa é casar-se ele mesmo com Serpina. Quando aceita esta solução, o bigode falso de Vespone é retirado e Serpina admite a farsa. Mas a esta altura Uberto está certo de que a adora e deseja o casamento. Os dois festejam seu amor e Serpina se reconhece “uma criada feita patroa” no dueto final:
Em apenas 20 anos, esse simples, mas revolucionário relato do amor de um homem por sua criada encantou plateias em Florença, Veneza, Dresden, Hamburgo, Praga, Paris, Viena, Copenhague, Londres e Barcelona. Em 1752, “La Serva Padrona” foi poderosa o suficiente para desencadear em Paris a “Querelle des Bouffons” ; ou “Querela dos Bufões”, uma “guerra” de conotações políticas em torno dos méritos dos teatros musicais francêses, suntuoso e reverente, e italiano, simples e irreverente.
“La Serva Padrona” provocou reformas que levaram às óperas inovadoras de Christoph Willibald Gluck (1714-1787) ; cuja obra Orfeu e Eurídice” foi objeto de artigo na “Revista Será?”; e abriram caminho para as de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) ; notadamente “As Bodas de Fígaro”. Montada em Baltimore, Maryland, em 1790, está também entre as primeiras óperas encenadas nos Estados Unidos. No Brasil, a obra de Pergolesi foi a primeira ópera a ser filmada com pretensão cinematográfica, sob direção da cineasta Carla Camurati em 1998.
O “pai” da ópera cômica faleceu precocemente, com apenas 26 anos de idade, no mosteiro franciscano de Pozzuoli, para onde se retirou, aparentemente convencido de que a tuberculose não lhe permitiria regressar a Nápoles. Pergolesi deixou, porém, um legado de extrema qualidade, embora pouco numeroso.
A música do jovem gênio testemunha uma personalidade criativa e sofisticada. Suas obras sacras são caracterizadas pela solenidade e imponência, mas também pelo intimismo comovedor, em que o sagrado é entendido como fonte de experiência emocional e a divindade se revela através da tensão e da plenitude do sentimento. Suas óperas, sérias e cômicas, são inventivas e ricas em musicalidade, colorido e magníficas melodias. Um tesouro que está sendo redescoberto e ganhando novamente o reconhecimento que gozou há séculos.
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