
J Borges
O país é “bestialógico” (disparatado). Muito. Mais que muito. E, com frequência, me divirto lendo poemas nesse estilo, usando palavras que não existem. Ficam sem sentido, claro, esse precisamente o objetivo. Melhores os sonetos que a realidade nacional, hoje. E gosto dessa graça livre, leve, solta (ao menos enquanto o Supremo não censurar), na esperança de que o mesmo possa também ocorrer com o amigo leitor. Seguem para começar, como exemplo:
- O primeiro de Millôr Fernandes. Há uma história divertida que me foi contada pelo próprio Ariano Suassuna, sobre o tal soneto. Começa quando apareceu de repente Millôr, em sua casa (na Rua do Chacon), para conhecer nosso mestre. Assim que entrou, Ariano declarou da rede e começou a recitar o tal soneto, começando assim: “Penicilina de casapopéia”. Millôr reagiu, “Você recitou esse primeiro verso errado, comendo uma palavra”. E Ariano “Você é que não escreveu certo, usando um verso alexandrino (com 12 sílabas), quando todos os outros têm apenas 10. Eu só corrigi”. E, o mais engraçado, é que Ariano tinha a mesma razão. Segue o texto, como escreveu Millôr:
Penicilina puma de casapopéia
Que vais peniça cataramascuma
Se parte carmo tu que esperapéia
Já crima volta pinda cataruma.
Estando instinto catalomascoso
Sem ter mavorte fide lastimina
É todo piso de horroroso
E eu reclamo – Pina! Pina! Pina!
Casa por fim, morre peridimaco
Martume ezol, ezol martumar
Que tua para enfim é mesmo um taco.
E se rabelha capa de casar
Estrumenente siba postguerra
Enfim irá, enfim irá pra serra.
- E o segundo é esse soneto magnífico, de Dom Luiz Lisboa, arcebispo da Igreja Católica em Cachoeiro de Itapemirim, a terra de Roberto Carlos. Segue:
Tu és o quelso do pental ganírio
Saltando as rimpas do fermim calério,
Carpido como taipas do furor salírio
Nos rúbios calos do pijón sidério.
É o bartólio no bocal empíreo
Que ruge e passa no festão site
Em ticoteio no partano estirio
Rompendo as gambas do hartomogenério
Teus belos olhos que têm barlacantes,
São camensúrias que carquejam lantes
Nas duras péleas do pegal balônio;
São carmentórios de um carcê metálico
De lúrias peles, em que buza o bálico
Em vertimbáceas do cental perônio.
- Não é soneto, mas é bestialógico, esta sextilha de Zé Limeira. Para quem não conhece, um cantador meio (talvez mais que isso) doido, com quase dois metros de altura, que andava sempre com um lenço vermelho no pescoço, óculos escuros (mesmo de noite) e anéis em todos os dedos. Por considerar veículos a motor “coisa do demo”, só andava a pé. E era adorado por seu público:
Pra cantar Filosomia
Sobre a vida de Jesus
Canto debaixo da terra
Na Santa Filanlumia
Oceano desdobrado
No véu da Pilogamia.
- Por fim, mais um soneto. Este não é propriamente bestialógico, apesar de ter esse título, mas que vale mesmo a pena, de Bernardo Guimarães (1825-1884). Autor, entre outros romances, de Escrava Isaura –que fez muito sucesso na adaptação da TV Globo, em 1976. É o Patrono da Cadeira 5, na Academia Brasileira de Letras, hoje ocupado por Ailton Krenak. Segue:
Eu vi dos polos o gigante alado
Sobre um monte de pálidos coriscos,
Sem fazer caso dos bucões ariscos
Devorando em silêncio a mão do fado.
Cinco fatias de tufão gelado
Figuravam na mesa entre os petiscos.
Envolto em crepe de fatais rabiscos,
Campeava o sofisma ensanguentado.
Quem é que assim me cerca do episódio?
Perguntei-lhe com voz de silogismo,
Brandinho um facho de trovões seródios.
Eu sou – me disse – aquele anacronismo
Que a vil caterva de olhos sulfírios,
Nas trevas sepultei um solecismo.
Por tudo, então, viva o Brasil real, popular e profundo, que ainda sobrevive no sangue vermelho, Rubro Veio (como no título de romance do confrade na ABL Evaldo Cabral de Melo), que ainda corre dentro de nós.
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