?Fogo Morto?, como se sabe, ? uma obra da maturidade liter?ria de Jos? Lins do Rego. ? livro can?nico da Literatura Brasileira, revelando n?o s? um autor capaz de ir al?m de um regionalismo prim?rio, como um escritor mais complexo e mais completo, cujos instrumentos formais tornaram-se mais afiados e penetrantes. Como observou Alfredo Bosi em sua ?Hist?ria Concisa da Literatura Brasileira?, ?Levou algum tempo para que o romancista se desapegasse do material de base, feito de obsess?es pessoais, e se detivesse na fixa??o objetiva de caracteres capazes de transcender aquela fus?o de escritor e crian?a, escritor e adolescente, peculiar ? sua obra inicial?.
A come?ar por seu t?tulo, tomado de empr?stimo ? linguagem regional da cultura criada em torno da monocultura canavieira do Nordeste, ?Fogo Morto?, como imagem, nos oferece a agu?ada e emblem?tica contradi??o que atravessa toda a obra. O ox?moro nos lembra que todo fogo ? vivo, din?mico e vital. O imagin?rio do fogo em toda a tradi??o ocidental n?o nos permite v?-lo como morto. Pelo contr?rio, ele ? a ant?tese da morte, sendo antes associado ? sexualidade, ? paix?o amorosa, a desejos ardentes, ? din?mica de uma vida que se transforma. O fogo que se verticaliza em chama ? luz, vis?o, claridade, calor que alimenta e que transforma. Mesmo as chamas de uma vela que reverencia um morto indicam que algo se perpetua, que a morte ? dominada.
Ao contr?rio de outras obras de Jos? Lins do Rego, em ?Fogo Morto?, n?o por acaso, o sexo est? ausente. Assim, a ser verdadeira a tese algo psicanal?tica de Wilson Martins de que o sexo funciona na obra do autor como algo contraposto ao crep?sculo patriarcal nordestino, a aus?ncia de um fogo vivo, sexual, em ?Fogo Morto?magnifica ainda mais esse belo r?quiem que fecha o ciclo da cana-de-a??car do autor.
Ao ter batizado seu d?cimo romance com esse significativo t?tulo, Jos? Lins do Rego acende nosso imagin?rio para al?m do que a express?o significa em seu sentido regional. N?o por acaso, h? em v?rias cenas da obra um predom?nio de um ambiente crepuscular. S?o constantes as express?es como: sol brando, sol quebrando, cair da tarde, etc. O fogo e a luz ?adormecem? nos crep?sculos da narrativa. O fogo e a luz ?adormecem? porque est?o prestes a morrer. O insistente crep?sculo que o narrador pontua antecipa que algo se extinguir? e torna-se emblema da ang?stia que envolve as personagens. Como numa trag?dia grega, podemos sentir que h? uma inexorabilidade em marcha, cujos sinais aqui e ali v?o se avolumando. H?, portanto, um fogo morrendo, sendo consumido. N?o est? ainda morto, mas logo cessar? de existir.
Ao contr?rio do fogo doce e alegre da vitalidade produtiva dos engenhos, o fogo que se finda ? naturalmente triste. Suas chamas s?o de revolta e de raiva, consubstanciadas no discurso daquele que ? o grande personagem do romance: o mestre Jos? Amaro, personagem que atravessa todas as tr?s partes do livro e que curte sua revolta como curte o couro de seu of?cio de seleiro. Mais que Vitorino Papa-rabo, Jos? Amaro ? que ? a grande personagem de ?Fogo Morto? e, nesse sentido, ? memor?vel como um cl?max o encontro do seleiro com o coronel Lula de Holanda, o j? decadente e caricato senhor do Engenho Santa F?.? A cena, constru?da de forma dram?tica, ? o encontro de dois orgulhos que se medem: o do algoz e o do humilhado.
Aqui recorremos ao Elias Canneti da obra cl?ssica que ? ?Massa e Poder?, na qual analisa perguntas e respostas?como elementos do pr?prio poder. O encontro de Lula de Holanda e do seleiro ilustram com perfei??o as reflex?es de Canetti, pois, como diz este escritor,
[…] o efeito das perguntas consiste justamente em real?ar o sentimento de poder do interrogador; elas lhe d?o vontade de formular cada vez mais e mais perguntas. Quem responde se submete tanto mais quanto mais ceder ?s perguntas. […] A tirania mais exigente ? a que se permite fazer as perguntas mais exigentes. […] Aquele a quem sua posi??o n?o permite r?plica deve dar uma resposta exaustiva e esclarecer tudo o que o outro procura ou, pela ast?cia, tirar-lhe a vontade de continuar indagando. [….] De certa forma, quem faz as perguntas contorna o interrogado e escolhe a posi??o que mais lhe conv?m. Ele pode ficar girando em torno do outro, surpreendendo-o e confundindo. [….] A pergunta que come?a de um modo titubeante procura penetrar mais fundo. Ela tem algo de cortante, funciona como uma navalha.
? o que se d? na longa acarea??o entre o seleiro e o senhor de engenho, da qual segue este brev?ssimo trecho:
? Quem ? que manda neste engenho, hein, mestre Jos? Amaro? De quem ? esta terra, hein, mestre Jos? Amaro?
- O senhor sabe melhor do que eu, coronel.
A voz do mestre saiu-lhe da boca dura como pedra. Apareceu d. Am?lia, com a sua carinha redonda, com ar de espanto.
- O que ? isto, Lula?
E, quando viu o mestre Jos? Amaro, desviou a vista.
- Lula, toma cuidado.
- Hein, mestre Jos? Amaro, eu mandei cham?-lo para saber de coisas que o senhor anda dizendo, hein?
- Coronel, eu n?o sei de nada. Vivo na minha casa, de meu trabalho.
- Quem manda nesta terra, hein, mestre Jos? Amaro?
- Quem manda ? o senhor de engenho.
- Mando eu, hein, mestre Jos? Amaro?
- Lula, fala mais baixo.
O sol iluminava as barbas brancas do velho. Ele tinha naquele momento um tamanho de gigante, em cima dos batentes de pedra. L? embaixo estava o mestre Jos? Amaro que falara de sua filha, a d. Nen?m.
- Coronel, eu n?o sou homem de leva e traz. Moro neste seu engenho desde o tempo do capit?o Tom?s e nunca dei desgosto.
- ? Floripes.
- Meu padrinho, ele me mata.
- Hein, mestre Jos? Amaro, quem manda neste engenho?
Para usar a met?fora de Canetti, o seleiro ? ironicamente ?cortado a navalha?, ? o couro humilhado que o senhor de engenho malha e retra?a antes de chegar ao ?pice do interrogat?rio: a difama??o e a expuls?o do mestre Jos? Amaro das terras do engenho. As perguntas formam um ritual de humilha??o e constrangimento. A linguagem do senhor de engenho n?o comunica, fustiga. Lula de Holanda gira em torno de sua presa para tocar num segredo, uma das m?goas de Amaro: a de ser filho de um assassino, fato que dissimula e compensa com a vaidade da maestria t?cnica herdada do pai artes?o. Amaro, como aponta a motiva??o s?gnica do seu nome, ? realmente amargo. Mas sua amargura ? ativa e altiva, tem algo da chama que sobe e nos seduz.
? com esse fogo amaro, que nada tem de morto, mas de revoltado e sedento de justi?a, que saudamos os 75 anos desse cl?ssico brasileiro. Viva Jos? Lins do Rego!
REFER?NCIAS
BOSI, Alfredo. Hist?ria Concisa da Literatura Brasileira. S?o Paulo: Cultrix, 1977
CANETTI, Elias. Massa e Poder. S?o Paulo; Bras?lia: Melhoramentos, Editora da UnB, 1983
COUTINHO, Eduardo; CASTRO, ?ngela Bezerra de. Fortuna Cr?tica de Jos? Lins do Rego. Rio de Janeiro; Jo?o Pessoa: Civiliza??o Brasileira/Funda??o Espa?o Cultural da Para?ba.
REGO, Jos? Lins do. Fogo Morto. Rio de Janeiro: Jos? Olympio, 1994.
Belo comentário!
Vou reler o trecho citado de “Fogo Morto”.
Para mim, o velho Zé do Rego não precisava ter escrito mais nada.
Obrigado, Mestre Clemente. Concordo. É obra canônica.
Abraço
Paulo Gustavo
Pelo que entendi do comentário de Clemente, ele não tem em grande conta “Moleque Ricardo”, “Doidinho”,”Menino de Engenho” e “Banguê”. É isso mesmo? Pergunto porque quando fui relê-los décadas mais tarde, fiquei com a impressão de que não eram livros tão arrebatadores quanto me pareceram na adolescência.
Abraço,
FD