Luciano Oliveira

Jornaleiro.

“Pensar feridas” é uma expressão que desapareceu do nosso léxico, mesmo nos seus usos cultos. É pena, porque é uma bela expressão, e valiosa na sua ambiguidade. Nela, o verbo “pensar” ainda guarda o sentido, perdido entre nós, de curar, aliviar. Nesse caso, a expressão tanto pode significar aliviar e curar dores, quanto refletir sobre elas. Lembrei-me dela no momento em que me pus, depois do choque eleitoral de 7 de outubro último, a refletir sobre as dores que estou sentindo, e me dispus a tentar aliviá-las. Estou, meus amigos e minhas amigas, pensando minhas feridas!

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É fato. Mais de 50% do eleitorado brasileiro – ou seja, mais de 60 milhões de brasileiros! – parece disposto a votar em Jair Bolsonaro para presidente da república em 28 de outubro. Entre eles, há o voto dos que têm uma consciência de classe dominante e votam segundo seus interesses; há os que, pelas mais diversas razões, criaram ou se permitiram deixar vir à tona um atávico horror ao PT assim que este lhes deu uma brecha ao se lambuzar com gosto no mel do dinheiro da corrupção; há um voto evangélico extremamente conservador em matéria de costumes, desorientado com as novas pautas identitárias e comportamentais, para quem um slogan como “O Brasil para Cristo” não é motivo de medo, mas de esperança – há de um tudo. Inclusive, claro, brutamontes que têm se sentido cada vez mais à vontade para amedrontar e mesmo agredir, verbal e até fisicamente, gays, “sapas”, militantes de direitos humanos etc. São os nazistóides do tipo “músculo e arma”, prontos para arranjarem um sentido para suas vidas irrelevantes vestindo uniformes cáqui à la SA, a milícia paramilitar do regime nazista. Desses, devemos ter medo; e, com eles, não há compromisso possível. É discar para o Disque-Denúncia, e pronto. Pelo menos enquanto o número existir…

Mas… Mais de 60 milhões de fascistas, temos tudo isso? Claro que não. Tenho pensado nas pessoas comuns que votaram em Bolsonaro. E não estou me referindo à parcela da nossa classe média de mentalidade escravocrata e brega que ostenta adesivos de Jair no vidro traseiro de suas camionetas Hilux. Estou pensando em pessoas simples, geralmente pobres, que compõem o que a gente chama de “povo”, e mesmo de “povão”. Essas pessoas nem sabem que diabo é fascismo, trabalham feito umas condenadas para criarem seus filhos decentemente, e legiões delas estão aderindo à onda bolsonarista que se agigantou no país. Como e por quê? Vou dar o exemplo de uma delas.

Na segunda-feira, depois do domingo do primeiro turno, bati um papo interessante com o camarada de um pequeno “sebo” perto de minha casa, onde compro livros de Agatha Christe. Compro, leio e lhe dou de presente para que ele venda de novo… e assim vá levando sua vida de “pobre diabo”, como se dizia antigamente. Ele votou em Bolsonaro. Por quê? Porque “a bagunça está demais”… Por bagunça ele se referia à roubalheira dos políticos, mas também ao assassinato de um pai de família morto na manhã do domingo dia 30 de setembro (o mesmo dia em que, à tarde, houve a manifestação pró-Bolsonaro em Boa Viagem), no Parque das Esculturas, em frente ao Recife Antigo, enquanto passeava de bicicleta com a mulher e uma sobrinha. O assaltante chegou, levou celular, bicicleta e lhe deu um tiro. Em tempo: ele próprio, o “sebista” já teve seu pequeno comércio arrombado três vezes por ladrões, durante a madrugada. Eles não foram roubar livros. Foram roubar cigarros refrigerantes e cerveja, que ele também vendia. Não vende mais. Cigarro, só no retalho; e, de liquido, agora só água mineral…

Essas pessoas têm aderido a um sujeito que vem destilando ódio há anos, mas elas não são más! No geral são pessoas boas e honestas, revoltadas com tudo o que sofrem diariamente, faça chuva ou faça sol, inclusive a intolerável violência urbana de que são as vítimas mais corriqueiras, porque mais vulneráveis. Têm medo por elas e por seus filhos, de que eles caiam no “mundo das drogas” e, daí, na criminalidade. Temos, no sentido sociológico do termo, que fazer um esforço de “compreendê-las”. Sei que não podemos nem devemos votar como elas votaram, mas também não podemos nem devemos simplesmente voltar-lhes as costas e continuar nosso discurso bem-intencionado e protegido dos horrores do mundo nas “bolhas” em que vivemos: a universidade, o escritório, o apartamento cercado de guaritas. Pessoas como meu “sebista” não são nem burras, nem ignorantes, nem estão sendo enganadas. Elas sabem o que estão fazendo. No curso da nossa conversa, de repente fiquei com a sensação de que elas se cansaram do nosso “humanismo mole” que em trinta anos de democracia (1988-2018) não lhes proporcionou o que também é um direito humano elementar: o direito à segurança pessoal (cf. art. 3º da Declaração dos Direitos Humanos da ONU). Na frente de um “doutor” como eu, elas até podem se sentir embaraçadas em dizer claramente o que pensam dos “tais direitos humanos”, mas como encontraram um “sem-vergonha” que vocalizou o que elas têm vergonha de admitir, se vingaram de nossas lições de moral com o voto – porque o voto é livre e secreto… Acho praticamente impossível que Bolsonaro não ganhe essas eleições. E aí vamos, pacientemente, pensar nossas feridas.

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Poucos dias antes do desastroso resultado eleitoral do dia 7 de outubro último, tive uma instrutiva discussão com uma amiga querida de longa data – também de longa data eleitora do PT. Discutíamos sobre a quem caberia expiar a “culpa” pelo desastre que já se antevia. Em certo momento, critiquei o PT por ter se recusado, meses atrás, a compor uma chapa com Ciro Gomes. “Mas como?” – ela reagiu. “O PT ofereceu a Ciro a vice-presidência!” – completou. Fiquei estupefato. Não ocorria a minha amiga que o Partido dos Trabalhadores, depois de ganhar quatro eleições presidenciais em seguida, e de ter afundado numa crise moral e política sem precedentes, bem que poderia ter aceito uma aliança a favor da democracia em que não figuraria como cabeça de chapa. No day after, Ciro deu o troco. Embarcou com família, malas e bagagens num avião com destino à Europa. Para mim, uns e outros mostram como o terreno da política – a da brasileira em particular – é um deserto sem grandeza.

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