Domingo, 28/10/2018, às 13:50 h.
Cheguei há pouco do lugar onde votei, e voltei bem menos infeliz do que aconteceu há três semanas. Há uma semana escrevi que iria votar com a mesma camiseta vermelha do primeiro turno, mas que dessa vez iria com medo. Pois bem: não fui. Quer dizer: não fui com medo! Na última semana de campanha aconteceu algo que não esperava: a“onda” bolsonarista, talvez porque a truculência de Jair Messias depois de receber dezenas de milhões de votos tenha assustado muita gente, mobilizou forças sociais em que já não acreditávamos, recuou, e como que perdeu seu poder mortífero. Vi muita gente, como eu, vestida de vermelho, o que não vi no primeiro turno. Cheguei até a ver uma morena bonita com uma camiseta com a inscrição Be gay– “seja alegre”. Brava morena! Mesmo sem sua coragem, estava, como ela, me sentindo menos acuado, e gostei desse sentimento.
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À tarde, passei as longas horas entre o começo da tarde e o começo da noite entre colchetes: […].
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Domingo, 28/10/2018, às 19:10 h.
Shit!
“Acabou-se o que era doce” – como diziam os desenhos animados da Hanna-Barbera.
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Segunda-feira, 29/10/2018.
Shit de novo!
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Em 1989, quando Fernando Collor chegou à presidência da república, escrevi a um amigo mais ou menos o seguinte: “A minha impressão é a de que o pior do Brasil chegou ao poder. Mas nem por isso vou desejar que ele faça um mau governo”. Hoje, segunda-feira, depois da eleição de ontem, como a palavra pior já é um superlativo, vou simplesmente dizer de novo ao meu amigo o que disse há 29 anos: “A minha impressão é a de que o pior do Brasil chegou ao poder. Mas nem por isso vou desejar que ele faça um mau governo”.
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Mas, na época, por mais que detestássemos Collor e suas bravatas (“eu tenho aquilo roxo!”), não havia um “collorismo” a ameaçar as liberdades públicas – diferentemente de hoje, em que há um fascismo social, a essa altura mais do que larvar, a temer. Nesta manhã, quando li os jornais, não foi Jair Messias quem me embrulhou o estômago: foi uma deputada estadual eleita por Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo, que apenas meia hora depois da vitória do seu candidato publicou nas tais “redes sociais” um canal aberto para que estudantes denunciem críticas feitas por professores em sala de aula ao presidente eleito, convidando-os a filmar “manifestações político-partidárias ou ideológicas que humilhem ou ofendam sua liberdade de crença e consciência” e enviar para ela as denúncias com “o nome do professor, da escola e a cidade”. E concluía esse ominoso chamamento com um encorajamento típico de polícia política: “Garantimos o anonimato dos denunciantes”.
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A leitura disso remeteu-me à história sinistra de um garoto russo de 12 anos, Pavel Trofimovitch Morozov, conhecido pelo diminutivo de Pavlik, que nos anos 30, na União Soviética, denunciou os próprios pais, camponeses que resistiam à política de “coletivização forçada” de Stalin escondendo grãos dos requisitores do regime. O pai foi deportado para a Sibéria, onde morreu, e o garoto ganhou estátua em praça pública. Não sei se ela ainda está de pé. Quando, jovem, li essa história pela primeira vez, cheguei a suspeitar de que era uma invenção da CIA. Era não.
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Chega a ser uma tristeza dizer isso: mas há pessoas que empestam o mundo quando respiram.
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Eu tenho mais medo do “bolsonarismo” do que da pessoa física chamada Jair Messias Bolsonaro. Por isso quando, em 1º de janeiro de 2019, o presidente eleito, perante o Congresso Nacional, prestar o compromisso previsto no artigo 78 da Constituição Federal – “manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil” – estarei torcendo para que ele pronuncie essas palavras meditando sobre o peso e a responsabilidade que cada uma delas implica. E não começarei, já no dia 2 de janeiro de 2019, a escandir, a menos que haja motivos graves, uma palavra de ordem de que a sociedade brasileira está exausta e exaurida – pelo menos eu estou. Depois de “Fora Collor!”, “Fora FHC!”, “Fora Lula!” e “Fora Dilma!” (que me lembre, só Itamar escapou…), vai ser preciso que ele faça uma grande merda para que eu abra a boca e grite: “Fora Bolsonaro!”
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Terça-feira, 30/10/2018.
Continuo “pensando minhas feridas”. E tentando pensar coisas boas. Afinal, como disse certa vez Merleau-Ponty, “se não há fatalidade boa, tampouco há fatalidade má”. Hoje é o segundo dia da “era Bozo” e, como diria Assis Valente, “o tal do mundo não se acabou”. Noutra pequena obra-prima, Alegria, o genial baiano, apesar de ter se suicidado como o meu amigo Fernando Mota, levanta meu moral cabisbaixo: “Minha gen-ente / Era triste amargura-aada / Inventou a batuca-aada / Pra deixar de padecer-ê-ê / Salve o prazer / Salve o prazer-ê-ê”.
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No mais…
“So long / Farewell / Auf Wiedersehen / Good night…” – cantava a Família Trapp n´A Noviça Rebelde. Vi-o pela primeira vez quando era garoto. Adolescente, revi-o e me apaixonei por Julie Andrews. Como pai, revi-o várias vezes com minha filhinha que hoje em dia, uma senhora, não vê mais o filme. Acho que ela gosta mais de filme iraniano… Já eu, além d´A Noviça Rebelde, continuarei vendo e revendo 2001: Uma Odisseia no Espaço,de Stanley Kubrick – o filme mais inteligente que já vi; Amarcord, de Fellini – o filme que levaria para uma ilha deserta; e O Sol é para Todos, de Robert Mulligan – o filme que gostaria de rever cinco minutos antes da minha morte. Tudo isso para dizer que hoje, depois de 38 semanas (acho que) ininterruptas, estou encerrando esta colaboração hebdomadária na revista Será?. Pessoas próximas de mim acham que essa decisão se deve à desolação que sinto com a situação geral do país. Mas não é. Estou simplesmente cansado de escrever, e tenho ainda muitos livros para ler antes de “abrir a porta do mistério”, como disse Santo Agostinho ao final de suas Confissõestão apascentadoras. Há muito que venho me preparando para ler Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust – o “petit Marcel”, como o chamava Pedro Nava, outra de minhas devoções – e é tempo de começar. É tempo de um começo.
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So long / Farewell / Auf Wiedersehen / Good night…
Prezado Luciano,
Que pena. Nos últimos meses, sua coluna era a primeira que eu lia quando abria o site de “Será?” nas noites das sexta-feiras. Além de divertida e erudita, era garantia de que quase sempre revolvia fatos frescos, ainda palpitantes. Sentirei falta de sua verve. So long, farewell, auf Wiedersehen, good night…
Abraço,
Fernando
Por questões de criação, educação e obrigação costumo respeitar as opiniões de todos. Entretanto tenho a minha opinião e costumo segui-la, convencido desde que é o que penso. Obrigado ao sr. João Rego pela gentileza de sempre me enviar a revista Será? Que considero uma das melhores publicações das que sempre leio. Mas me permito conconcordar e seguir o caminho do sr Iremar. Um abraço.
Prezado Senhor Nealdo,
Pelo que entendi, o senhor vai seguir o gesto do senhor Iramar (não “Iremar”), pedindo ao nosso editor João Rego para não mais enviar-lhe a revista, pelas mesmas razões dele.
No caso dele, um artigo meu (o hebdomadário nº XXXVI) teria sido apenas a gota d´água: ele estava deixando de ser leitor da Será? porque a maioria dos articulistas da revista era constituída por partidários da ideologia marxista!
Na ocasião, respondendo a ele, observei que um tal juízo, vindo de uma pessoa educada e ilustrada como ele, só poderia significar, de duas, uma: ou eu enlouqueci, ou o mundo enlouqueceu.
Mantenho o que então disse. Dos articulistas mais frequentes da Será? (João Rego, Clemente Rosas, Sérgio Buarque, Fernando Dourado, Helga Hoffmann etc.), só eu, aqui e ali, introduzo nos meus textos pitadas analíticas extraídas do paradigma marxista de análise das sociedades capitalistas, porque, ombreando-me em sociólogos brasileiros de peso e de prestígio (ao lado de quem sou um “zero à esquerda”… – desculpe: o trocadilho saiu automaticamente!), como FHC, considero que o instrumental metodológico do marxismo (ao lado de outros, naturalmente, notadamente o de Weber) continua valioso para se analisar as sociedades modernas: extensas, complexas e… capitalistas!
Na ocasião, não externei com a ênfase que externo agora o meu espanto, de certa forma minha tristeza, mas também o meu medo, quando constato que pessoas ilustradas e educadas como os senhores, de cuja inteligência e boa-fé não tenho razões para duvidar, chegam à conclusão, lendo artigos como os escritos pelos colegas que acima nomeei, de que a revista Será? esposa, pela maioria dos seus colaboradores, uma ideologia marxista!
Se é assim com pessoas como os senhores, calcule o que pode se passar na cabeça de pessoas menos preparadas!…
Mas não seja por isso: se, como aconteceu com Iramar, o senhor também não quer mais receber a revista por causa do artigo de minha autoria publicado acima, que não seja por isso, como disse: se bem o leu, terá percebido que foi o meu último dessa série “hebdomadária” que se estendeu por 38 semanas.
Ando cansado, caro Nealdo, física e psicologicamente cansado. Sim, é verdade: como escrevi no último artigo, a minha retirada não é decorrente da situação desoladora que o país está vivendo faz tempo. Mas, claro, ela é um empurrãozinho a mais no sentido de me reconfortar na minha decisão de, pelo menos por algum tempo, retirar-me da pólis desestimulante que estamos vivendo, e ir cuidar do meu pequeno jardim.
Retribuindo o abraço, despeço-me cordialmente.
Luciano Oliveira
Obrigado, Fernando!
Não ser lido por leitores como você é uma das perdas que meu retraimento da pólis implica.
So long,
Luciano