Alcides Pires

Public Execution By Guillotine France 1939 – Picture Death Penalty .

Há uma certa surpresa em relação aos eventos que expõem o distanciamento dos governos em relação ao cidadão comum. É interessante perceber o quanto esse fenômeno está espalhado pelo mundo e atingindo países de culturas distintas, continentes e padrões de conforto completamente diferentes.

Fenômenos que surpreendem a imprensa, os governos, os observadores em geral, e que parecem subverter a lógica estabelecida. Estão nesse conjunto a eleição de Trump, a aprovação do Brexit, as manifestações dos coletes-amarelos em Paris, as primaveras nos países árabes. Na nossa América Latina, os movimentos de junho de 2013 no Brasil, a reação popular aos arroubos autoritários na Nicarágua, a onda migratória da América Central rumo aos EUA, a grande greve dos caminhoneiros no Brasil e talvez a eleição de Bolsonaro. Há algo que deve estar presente em todos esses eventos ou movimentos sociais. São países muito diferentes entre si.

Há algo na base disso tudo. Um enorme sistema de comunicação ponto a ponto, de baixíssimo custo, dando aos cidadãos uma capacidade de difusão de informações comparável a órgãos de imprensa. Como em qualquer sistema de comunicação, junto com a informação vai um conjunto de ruídos, e em alguns casos o ruído é introduzido de forma deliberada. Em que pese a capacidade destrutiva desses ruídos, como as fakenews, a facilidade de seleção e transmissão de informação está na base de uma mudança na estrutura de poder, uma migração da capacidade de articulação das instituições oficiais e tradicionais para os cidadãos e seus grupos informais.

Estamos apenas no início dessa revolução. Seremos surpreendidos ainda muitas vezes pelos movimentos de geração espontânea e difusão rápida. Os cidadãos, e outros atores, ainda estão aprendendo a usar esse poder, e como qualquer poder, precisa ser exercido com responsabilidade. E é um poder cujos sistemas de freios e contrapesos funcionam de forma mais sutil e têm efeito em mais largo prazo. Cujo exercício é difuso e em rede. Onde as consequências de certos atos podem ser imprevisíveis, de quase impossível imputação individual, e nem sempre com os resultados desejados inicialmente.

Por outro lado, expõe quase todos os atos das pessoas no exercício do poder tradicional. E não somente pelos crimes que possam cometer, mas pelos atos legais ou revestidos de legalidade, mas que ainda assim ferem a percepção ética da maioria das pessoas. Pessoas que se sentem desamparadas em um sistema que as escuta a cada quatro anos e as ignora no resto do tempo.

Estamos caminhando para um tempo em que não serão tolerados os recebimentos de “auxílios”, salários e vantagens distanciadas do razoável e pagas pelos impostos que encarecem a vida. Um tempo em que não adiantará o uso de palavras difíceis para embelezar decisões judiciais que afrontam a lógica.

Já vimos vítimas desse processo. Não adiantou o maior líder popular do país tentar dar à sua condenação os contornos de injustiça, perseguição e falta de provas, quando as pessoas recebem fotos do sítio, do apartamento, dos relatórios de viagens dos seguranças, assistem aos depoimentos dos financiadores. Tudo direto no seu celular, às vezes comentados e transformados em memes, como é comum na nossa cultura.

Assim como não há como explicar recebimento de verbas para mudança de cidade, ainda que o ex-deputado tenha virado presidente e continue na mesma cidade. Nem precisa de condenação para que todos entendam como um assessor parlamentar movimenta milhões sem uma boa explicação.

Mesmo quem surfa a onda das mudanças pode naufragar na sua espuma.

As instituições tradicionais não acabarão. Mas precisarão mudar radicalmente para se adaptar a esse mundo. Os líderes não precisam mais da imprensa para  falar aos seus liderados, mas não poderão esconder os seus atos de ninguém. E os cidadãos mudam de líderes sem nenhum pudor, pois descobriram o seu poder para escolher quem os lidera, e descobrem a cada dia o seu próprio poder de liderar um grupo.

Em alguma medida, o espírito da revolução francesa está de volta. A revolução que reagiu à monarquia de poderosos encastelados, pois as repúblicas se tornaram novas formas de poder quase monárquico, novos reinados tomados pela nobreza das castas de funcionários públicos privilegiados e partidos políticos carcomidos pelo exercício do poder em função dos seus próprios interesses e financiados por corporações que precisam dos negócios públicos. Nesse ambiente não há traços de igualdade ou fraternidade, mas ao contrário, de privilégios aos mais privilegiados.

A liberdade, quando última sobrevivente da trinca sagrada, dá ao cidadão comum cansado a força de expressar a sua indignação quando lhe é conveniente. Quando a indignação cresce, se junta com a de outros que estão sintonizados nas mesmas vibrações que se espalham nas ondas dos grupos de whatsapp, facebook e outros, vemos explosões inexplicáveis pelas velhas fórmulas.

Precisamos de uma nova geração de líderes, ou de uma nova visão dos líderes atuais, que compreenda esse poder popular. Que defenda seus princípios e que o reconheça como tal, não importa em que partido apareça. E que combata os malfeitos e malfeitores, também sem importar se são seus aliados. O tempo da esperteza e do oportunismo passou. Que a nova revolução corte as cabeças apenas de forma figurativa.