Aécio Gomes de Matos

A crise institucional que se vive no Brasil tem deixado todo mundo meio abasbacado,  uns sem ter muito o que dizer face à incongruência das situações,  outros com muita certeza de suas verdades. Neste contexto, que já dura alguns anos, estremecem as instituições. E até mesmo o convívio entre amigos e familiares tem sido afetado seriamente pela intolerância.

Não se pode negar que estamos em uma crescente crise institucional, que afeta inclusive os poderes da república, contrapondo o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Isso tem repercutido na falta de crença e de adesão da própria população às mais simples regras da vida social, aos direitos e deveres vigentes na Constituição e nas normas  da república.  As queixas pela falta de acesso aos serviços públicos fundamentais e pelo descumprimento sistemático dos papéis institucionalizados das estruturas de governo deixam todo mundo a ver navios, descrente e sem energia para ações proativas. Indivíduos isolados e submetidos às cúpulas dominantes.

Nesta perspectiva, lembro aqui o conceito estabelecido por Wilhelm Reich, no seu livro Escuta, Zé Ninguém(1946), instigado pela sua experiência pessoal nos anos trinta daquele século. Com este título depreciativo, ele procura interpretar a situação do cidadão comum diante das garras do nazismo e do comunismo. Dá ênfase aos processos de manipulação das massas através da ideologia e do culto à personalidade, em contraposição à postura revolucionária para entender cada indivíduo e cada grupo social como sujeitos de suas próprias histórias. Ele mesmo sofreu as consequências de sua autonomia de pensamento crítico: foi perseguido em países de regime totalitário como Alemanha e Rússia, que se consideravam antiliberais, e morreu preso nos Estados Unidos, em 1957, reino do liberalismo.

O argumento central de Reich é que a pessoa comum, o “Zé Ninguém”, ao procurar proteção para sua própria vida, termina prisioneira dos poderosos, sejam governantes, ideólogos, religiosos, que determinam o que é a verdade, quais são as regras de sobrevivência e as condições de realização e crescimento pessoal. Nesta direção, a sociedade se funda num grande número de pessoas que seguem os ditames de minorias poderosas, cujo poder lhes é conferido por processos de difusão publicitária, que implicam em identificação inconsciente com essas figuras salvadoras. Reich fala ao homem comum: “Ergueste tu próprio os teus tiranos e és tu quem os alimenta”.

Esta referência pode ser importante para tentarmos entender o que se passa no mundo de hoje e, em particular, no Brasil. Segundo Reich, a figura humana comum, que ele chama de Zé Ninguém, representa segmentos importantes da maioria das populações nacionais, sob regimes políticos diversos, que é levada a escolher seus governantes através de processos que raramente representam compromissos objetivos com a consciência social, com a capacidade objetiva de avaliação e cobrança do que foi prometido nas campanhas eleitorais. Neste sentido, as instituições passam a ser concebidas pelas mesmas forças políticas que governam, seja no tocante à Justiça, ao sistema policial, à saúde, à educação e a todas as esferas onde a população espera o apoio do Estado. Isto não é muito diferente do que vivemos hoje no Brasil.

É verdade que as relações de poder no mundo moderno, inclusive entre nós, têm passado por uma série de situações cada dia mais inusitadas. O surgimento e, sobretudo, o crescimento das redes sociais têm produzido efeitos surpreendentes. De um lado, o maior acesso às informações em tempo real; do outro, a tendência de aderir a posições mais reconhecidas no ambiente que se frequenta, independentemente de avaliações críticas isentas. Este aparente poder de ação, sem uma visão crítica racionalmente orientada, tende a gerar ondas, onde o “Zé Ninguém” vai de roldão na mão dos grupos que têm mais poder de comunicação e mobilização.

Argumentos críticos a movimentos sociais, com fundamentação ideológica, não são minimamente considerados pelos seguidores ativos, nem pelos passivos. Uma eleição pode ser conquistada, como vimos recentemente no Brasil, por um massivo investimento nas redes sociais. Um esforço que, neste caso, se nutriu mais do antagonismo emocional à história de um partido político, do que à clareza de um projeto de desenvolvimento. Terminado o pleito, é possível observar que a inconsistência dos vencedores termina se demonstrando na falta de adesão ao governo, que despenca na primeira avaliação de aprovação popular.

É importante observar, neste quadro, que a capacidade de reação desta “pessoa comum” tem sido manipulada pela ideologia da esquerda, da direita e pelo pragmatismo dos que se dizem de centro. Não há saída previsível. Primeiro porque, apesar dos tropeços dos governantes eleitos e da falta de articulação entre as instituições (Executivo, Legislativo, Judiciário, governos estaduais e municipais, …), não existe um posicionamento crítico minimamente organizado para além das disputas partidárias de grupos políticos; depois porque as posições das redes sociais continuam a ser manipuladas pelas mesmas forças políticas, sem um mínimo espaço para avaliações críticas das pessoas comuns.

Enfim, vivemos uma crise política e institucional sem dimensões, onde os indivíduos têm quase nenhuma chance de interferir ou de encontrar os caminhos institucionais que lhes garantam minimamente a sustentabilidade das condições atuais, ou uma evolução considerável na sua qualidade de vida. Isto tem levado a uma prática autocentrada, cada um buscando seus próprios espaços, para além de regras institucionais minimamente adequadas. É o que se consagrou na tradição brasileira como a “Lei de Gerson”, onde se procura levar vantagem em tudo. Cada um por si, … e “deus” por todos!

Esta minha posição pessimista com relação ao futuro não deixa de considerar, como disse Sergio Abranches em recente artigo, que as crises disfuncionais podem ter um significado positivo, à medida que desarticulam o velho organismo institucional, abrindo espaço à inovação. Não obstante, para torcer e investir nesse caminho otimista, como temos feito no movimento Ética e Democracia, há que considerar que a inibição das iniciativas individuais e, particularmente, a dificuldade de formação de sujeitos coletivos, que se mobilizem para construir suas próprias histórias, têm me deixado pouco confiante.

O mais grave deste quadro é que, ainda segundo Reich no seu livro A psicologia de massa do fascismo (1936): “Oêxito desta organização de massa deve-se às próprias massas e não a Hitler. Foi a estrutura humana autoritária, que teme a liberdade, que possibilitou o êxito da sua propaganda.” Em outras palavras, o homem comum depende da palavra de um líder ou de um movimento social para se expressar, justamente porque ser sujeito da sua própria história mete medo. … é aí que faz sentido o titulo do livro de Reich: Escuta, Zé Ninguém.