Num país que não prima muito por sua memória e onde tudo parece estar sempre começando num eterno presente, é alentador que o passado histórico seja lembrado às novas gerações. Assim fazem anualmente as escolas de samba em meio aos prazeres do Carnaval. E o fazem de uma forma fantástica e criativa, capaz de deslumbrar não só os brasileiros, mas também, sem ufanismo, outras plateias ao redor do mundo.
Talvez um bom biógrafo tenha que ter não só algo de romancista, mas também de um carnavalesco que precisa passar encanto à sua história. Nós, leitores, somos sensíveis ao tédio, precisamos, de par com a possível exatidão histórica, de movimentos vivos, de cores, cadências e brilhos por onde a narrativa vá fluindo. Até porque, em muitos casos, logo sentimos que o autor atravessa o samba ao se deter em detalhes sem importância. O bom biógrafo, mesmo que fale de destinos amargos (como é o presente caso) precisa encontrar o ponto do doce.
Essa introdução é para (continuando com a metáfora do Carnaval) jogar merecidos confetes sobre o livro do escritor e jornalista mineiro Lucas Figueiredo: “O Tiradentes, uma biografia de Joaquim José da Silva Xavier” (Companhia das Letras, 2018), fruto de cinco laboriosos anos. Confesso que para mim o biografado sempre foi quase uma abstração. Uma abstração cívica, é verdade, mas abstração. Imagino que muita gente, malgrado os estudos escolares, também não passe deste ponto: Tiradentes como uma abstração, um fantasma, apenas (é duro aqui este advérbio) um mártir do regime colonial português no Brasil. Enfim, um Tiradentes desencarnado de ser homem, um mito descolado das montanhas e estradas pedregosas de sua Minas natal.
Lucas Figueiredo, quaisquer que sejam os senões que se possam apontar no seu livro, nos entrega um Tiradentes encarnado e humano. Um personagem à altura do seu destino, sem qualquer mitificação. Talvez por isso, Figueiredo tenha escolhido como epígrafe este verso emblemático: “Consiste o ser herói em viver justo”, de ninguém menos que outro inconfidente: o poeta e desembargador Tomás Antônio Gonzaga. É, pois, com justeza e equilíbrio que vamos acompanhar o lúcido e “louco desejo de liberdade” das Minas setecentistas.
O Tiradentes que emerge da sedutora narrativa de Figueiredo é bem um homem do seu tempo. Não obstante se proclamar sem “figura, valimento e riqueza”, tampouco é o pobre-diabo em que um dia se quis acreditar. Ele se vê assim, mas nós o vemos acicatado pelas limitações da sociedade colonial e pela comparação com outros inconfidentes e contemporâneos mais bem socialmente situados. Ao lado do Joaquim da caserna, onde era oficial (com a mais baixa patente de então, a de alferes), e do ofício liberal de “dentista”, que dominava como poucos (o que lhe valia gratidão e admiração popular), há o Joaquim por assim dizer empreendedor, construtor de estradas, administrador e “homo viator”, conhecedor exímio dos caminhos tortuosos das ricas e surpreendentes Minas Gerais.
Pois bem. Este versátil homem comum, mas igualmente seduzido, a exemplo de padres e intelectuais da Conjuração, pelos ecos do Iluminismo e da Revolução Americana, será de fato o homem o mais pragmaticamente empenhado em empunhar o estandarte da revolta contra o jugo da Coroa portuguesa. Em seu empenho e em seu entusiasmo, não tem papas na língua. Sabe falar e fala bastante, é um comunicativo nato, a ponto de se perder pela própria língua…
Tendo se fundamentado em preciosas fontes primárias, não só nas bibliográficas, Lucas Figueiredo consegue a proeza de ser documentalmente rigoroso sem ser cansativo. Impressiona, por exemplo, como a cada passo, sua narrativa remete a numerosas fontes históricas. Com razão, o historiador e brasilianista Kenneth Maxwell aponta, na orelha do livro, que Figueiredo “[…] reconstrói as Minas Gerais do final do século XVIII de maneira extremamente vívida. E não ignora o importante papel das mulheres. Tampouco o papel dos escravos e da escravidão”. Enfim, um dos grandes méritos do livro é que, junto ao biografado, o autor parece biografar a própria Inconfidência Mineira.
Leia-se, curta-se, divulgue-se!
Paulo Gustavo
Resenha agradável de ler e que me fez querer ler o livro resenhado, ainda mais se é recomendado também por Kenneth Maxwell, que eu acho maravilhoso, em particular “Naked Tropics”. Maxwell escreveu sobre Minas no sec. XVIII em “A devassa da devassa: a inconfidência mineira (Brasil-Portugal 1750-1808)(Paz e Terra 1977 e 2005). Se ele elogiou Lucas Figueiredo é porque o livro é mesmo sério.
Prezada Helga,
É como se costuma falar: “A gente lê como um romance”.
Obrigado por seu comentário.
Abraço.
Um maravilhoso Convite à Leitura, já nos seduzindo com a metáfora viva para o estilo do autor. Adiante me lembrei do “herói real” de Augusto Boal.
Obrigado, estimada Dulcinea.
Abraço