A rua do Recife não poderia deixar de ser para mim, ontem como hoje, a mais importante de Garanhuns, senão também do mundo. Pois foi no número 122 que moraram mamãe, suas irmãs e irmão – sendo ela Lucy, as irmãs Nicinha, Dulce, Lígia e Maria Ana, dita Bebé, e o irmão Hélio -; meus avós, Pedro Lucena e Maria Laura; minha bisavó Lalinha e, até onde sei, a tia-avó de minha mãe, portanto a tia Auta – cujo noivo morrera na guerra do Paraguai -, irmã da bisavó, logo tia direta de minha avó, e que tinha mamãe como sobrinha-neta favorita, fato para mim bem compreensível. Tamanho era esse xodó entre ambas que mais tarde legou-lhe a preciosa máquina de costura Singer, que mamãe tem até hoje, às portas dos 87 anos. Por razões bem pessoais, a data mais memorável que viveu o endereço, muito mais até do que a que assinalou o estabelecimento da família por lá – que eu suponho deva ter acontecido um par de anos antes, quando o mundo afundava na crise de 1929 e Garanhuns pagava sua cota no cataclismo -, foi o dia 17 de junho de 1932, dia do nascimento de mamãe, née Maria Lucy de Barros Lucena, a quem simplesmente, em mais de uma maneira, devo a dádiva da vida. Foi a uns quinhentos metros dali, na praça Souto Filho, que ela me daria à luz, 26 anos mais tarde.
Vendo hoje a cidade e deambulando por suas ruas acolhedoras – cá entre nós, sou desses que são incapazes de conceber um latrocínio em minha terra, isso seria algo que escaparia à minha cognição, pois lá me sinto enlevado, e tão inimputável como um soberano -, reitero que a rua do Recife era privilegiada. Nem tão alta quanto a Dantas Barreto, lá pelas bandas da praça Dom Moura, e nem tão baixa quanto a Santo Antonio, de onde se podia descer muito mais rumo ao que era então o meretrício e a serraria, a rua do Recife, depois batizada de Dr. José Mariano, começava na praça João Pessoa e, a depender das referências de quem a observasse, tanto podia terminar no hotel Monte Sinai, bem depois de ganhar o nome de Rui Barbosa, na colina que coroava o bairro de Heliópolis, lá dito Arraial, quanto podia acabar no mar, mais de 240 quilômetros adiante, quando, afinal, cumpria o prometido na denominação, trazendo-nos de volta à capital. Isso porque quem por ela trafegasse, se seguisse em linha reta, bastava embicar à esquerda na altura da AGA para, passado o posto Kennedy, colocar o carro na estrada e purgar o calvário da separação sentida, em que o grosso da melancolia durava até São Caetano, em cuja encruzilhada o magnetismo do Recife passava a prevalecer sobre o amor ao torrão agora sumido na bruma.
Não será esta a ocasião mais propícia para falar da rua do Recife mesmo porque prefiro cingir a narrativa a uma certa casa. Mesmo assim, acho que ela me trouxe mais do que posso valorar. Pela janelas que se abriam sobre a calçada, e ainda quando ainda era muito pequeno para poder ver o movimento ao lado dos adultos, lembro dos passos de quem trafegava mansamente. Não era raro que entreouvisse conversas inteiras, o que me faz até hoje evocar a primeira infância sempre que ouço o sotaque cantado, próprio da prosódia tonal com que lá se fazem perguntas e se terminam as frases. Já da janela, quando contava entre quatro e cinco anos, nada me empolgava tanto quanto ver na calçada do lado ímpar uma linda menina bochechuda chamada Luciana. Tanto insistia que queria vê-la de perto que mamãe atravessava a rua e ia conversar com os pais de minha musa-bebê enquanto eu lhe contemplava, extasiado, o rosto corado e o chuca-chuca louro. “Ele é louco pela filha de Zé Paiva”, dizia aos vizinhos. Desde então, dada a conivência materna, nunca me contive diante das mulheres que me chamaram a atenção. Quase de frente à nossa janela, uma senhora chamada Gisela, de voz rouca, olhos rasgados e cabelo escorrido, irmã de uma baixinha, contemplava o ramerrão da rua por horas a fio. Mas esses detalhes também poderão esperar por melhor momento.
Voltando à casa, a disposição dela era banal, pelo menos na área interna, e destacava-se pela escuridão permanente. Até onde posso lembrar, as luzes elétricas ficavam acesas até mesmo durante o dia, a começar pelo longo corredor que ligava a porta da rua a uma espécie de sala de jantar, contígua ao avarandado de onde divisávamos o quintal. Imagino que quem chegasse como visita, era conduzido àquela sala cuja claridade opaca entrava pelas janelas. O teto, que lá se chamava de estuque, era muito alto, e na ponta de uma longa haste acorrentada havia uma luz dentro de uma bola em cujo fundo jaziam mariposas mortas, de asas queimadas. A mobília era pesada, austera e o forro das cadeiras reproduzia uma espécie de ameba verde-musgo descolorida, que eu gostava de raspar com a ponta das unhas como se fosse um felino a afiar as garras. O destaque que não escapava ao olhar era um quadro a óleo pintado por minha avó que bem poderia figurar em galerias da Itália. Nele Jesus Cristo apontava um coração extra-corpóreo, aflorado, envolvido numa coroa de espinhos. Diziam que o olhar severo do Cristo nos acompanhava onde quer que estivéssemos na sala, teoria comprovada pelos testes a que eu o submetia ora com humor, ora com medo.
Passada a sala, havia três quartos que ficavam à margem de um amplo corredor interno. Nada sei da disposição física anterior da família, quando lá viviam todos, antes de minha chegada ao mundo em 29 de março de 1958. Mas quando me apercebi de alguns elementos, por volta do nascimento de meu irmão em 26 de fevereiro de 1961, encontrei-me num berço no segundo quarto, perpendicular à cama de casal. Um grande armário reinava solitário no terceiro cômodo e diria que ninguém dormia no primeiro. Minha avó já morrera. Quanto a meu avô, casado em segundas núpcias, morava no Recife. Para além da parede dos três quartos, havia um jardim interno que um dia me pareceria muito menor do que imaginava. No terraço que o circundava, havia mais um quarto, conhecido como o escritório de vovô. Dizia mamãe que era ali que ele fazia seus relatórios ao regressar das viagens pela Atlantic, e era também ali que mantinha latas enormes e pesadas que continham moedas que datavam dos tempos do Império, inclusive patacões de que se dizia valer muito dinheiro. Talvez por isso, obedecíamos a um silêncio respeitoso no recinto. Tanto na família materna quanto na paterna, qualquer referência a dinheiro sempre foi feita em voz baixa, dado talvez o caráter tóxico do tema, quase vulgar.
Na confluência dos corredores, antes que avistássemos o avarandado do quintal, havia uma sala de jantar, onde fazíamos as refeições. Dela, complementando o “L” da disposição da área ocupada pela família, derivavam mais três quartos e um banheiro, sendo o último cômodo à esquerda, a chamada rouparia, cujo chão era de tábuas. Ali quebrei minha bengala Bat Masterson, enfiando-a numa fresta e me apoiando sobre o cabo. Ainda lembro do estalido. Tia Bebé dormia no primeiro e Lalinha no segundo quarto à direita, ambos com vista para o jardim onde predominavam flores azul claras e rosa-flamingo, que não saberia denominar, embora tenha ouvido falar de nuvens, papoulas, miosótis, flamboyants, gladíolos, gerânios, cravos e margaridas. À parte as janelas que davam sobre a calçada, gostava do alpendre que divisava o quintal. Nem tanto pela vista, mas porque era ali que as disposições da vida humana da casa aconteciam. Era naquela varanda que o rapaz do balaio o acomodava com as frutas recém chegadas da feira e recebia da empregada um copo d´água que bebia com sofreguidão, o pomo-de-Adão fazendo um movimento engraçado. Era também ali que mamãe conversava com as empregadas enquanto fumava, em especial com uma mulata troncuda a quem chamava de Comadre, que tinha uma filha pretinha de nome Nova, e que uma vez apareceu com o rosto inchado de uma dor de dente que a fazia babar.
Não tenho lembranças de papai naquela varanda. De resto, nem em qualquer outro cômodo da casa. Anos depois, começaria a entender a razão primordial dessa ausência. Na casa onde passara sua infância, a beleza de mamãe ganhava outra dimensão. Era como se ali os cabelos bem arrumados e as roupas bem cortadas não esgotassem seus atrativos. Mas ganhavam fulgor de filme diante de seu gosto pelo comando, dada a naturalidade com que impunha a ordem. Não sei que pensamento lhe ocorriam aos 30 anos, como jovem mãe, ao dormir e caminhar como visitante na casa onde já não moravam seus pais, senão sua irmã mais nova e a velha avó. Seja como for, era ali que a partir das três da tarde tinha início o ritual elaborado de nos aprontarmos, uma expressão ainda hoje recorrente em certo segmento da família, assinalando o rito de se expôr ao olhar público. Daquela época até hoje, de pouca serventia teria tido a vida para mamãe se não colhesse a cada saída um elogio à maquiagem, ao penteado e à beleza dos filhos. O escrutínio do povo era importante numa cidade que testemunhara o esmero com que tinham sido criadas as filhas de Pedro Lucena, cada irmã dedicando tempo para as provas de vestido e se empenhando em brilhar nas festas do Santa Sofia e na parada do 7 de setembro.
Ao pé da escada longa – devia ter pelo menos uns 15 degraus – havia a carvoaria que fornecia as pedras quentes que a engomadeira colocava no ferro de passar para deixar as roupas de alvura imaculada. Vincos e pregas sempre foram um ponto de honra na casa de minha mãe, e ai de quem ousasse ir à rua com um traje minimamente amarrotado. “O que as pessoas vão dizer?”, sempre foi a expressão por excelência dela e das irmãs. Onde quer que vivam seus filhos e descendentes, duas gerações mais tarde, mesmo que seja nas planícies do meio-oeste americano onde cada um cuida de si, o legado do apuro no vestir permanece vivo entre alguns. Era na carvoaria que começava o quintal propriamente dito, com uma latada de chuchu logo à esquerda – que em Garanhuns se comia com um molho de leite como jamais voltei a ver -, e se desdobrava como se obedecesse a feudos de soberania. À direita, bem abaixo da rouparia, ficava uma figueira, cujos frutos soltavam uma resina branca que nos colavam as pontas dos dedos. No meio do quintal, reinava sobranceiro um abacateiro que dava muita fruta, ingrediente constante nas sobremesas e nos sorvetes que hoje me lembram o pistache. Havia ainda pés de manga, maracujá, e de um frutinha azeda chamada pirim.
Aquele quintal era um mundo. Quando ainda fazia a corte à minha mãe, meu pai costumava dar voos rasantes sobre o abacateiro em um pequeno avião da Aerofoto, onde trabalhava. Tamanha era a proximidade dos mergulhos que ela temia que ele se estatelasse no relógio da prefeitura, sem tempo para arremeter, que ficava a três quadras mal contadas para baixo. Quando as filhas do abacateiro caíam com as reverberações do motor, estava dada a senha para que ela buscasse companhia feminina para ir até o campo de pouso do Arraial para esperá-lo sair da carlinga com seus ares mundanos e narinas de um César aviador em visita à aldeia. Nos fundos do quintal à direita, no quartil que ia do abacateiro até o canto do muro, reinava a área proibida. Pois ali ficava a fossa. Quem ali chegasse, dizia a empregada Regina com um hálito de quem fumava cigarros de fumo de rolo, podia afundar na areia e sucumbir rapidamente num mar de cocô viscoso de que ninguém voltara vivo. “Já afundou foi gente lá dentro”, e desviava o olhar do meu. Quando uma bola caía lá por algum acaso, eu ia chamar um adulto para resgatá-la antes que sumisse na podridão. “A bola está na fossa, cuidado”, e as pessoas simplesmente iam lá como se nada de grave pudesse lhes acontecer. Do outro lado do muro, uma portinhola ligava-nos ao beco do Bispo.
Já na quina esquerda, via-se uma casinhola que provavelmente era só um quarto, onde funcionava o banheiro dos empregados. Próxima ao bequinho, que a seu turno ficava nos fundos da casa paroquial, dita Palácio do Bispo, ali mesmo onde D. Expedito Lopes fora alvejado pela padre Hosana no inverno de 1957, não se recomendava que usássemos aquele banheiro. Mesmo porque era lá que se aliviavam os meninos do rosto encardido que traziam carvão em sacas de estopa, e os homens que tangiam os burricos com latas de água potável. Um privilégio inegável daquele ponto do quintal, era que ali havia uma frondosa jaqueira, ao lado de uma constelação mais discreta de pés de fruta-pão. Vez por outra alguém dizia que a jaca estava no ponto certo. Um adulto provava o primeiro bago para ver se estava travoso, aguado, doce, duro ou mole. Então era dada a senha para que pudéssemos comer. Mamãe abria-os com cuidado, tirava a membrana que envolvia o caraço e mandava que mastigássemos bem antes de engolir para prevenir uma dor de barriga. Por hipótese alguma podia ser jaca colhida no mesmo dia porque o calor poderia gerar uma diarreia fatal. Ainda hoje paro diante das jaqueiras e me maravilho à visão das frutas dependuradas a meia altura, extasiado com aquela beleza.
Sem ser aquela uma casa enlutada, e poderia até ser, dada a morte de minha avó em 1957, pouco havia ali que lembrasse o longo calvário daquela mulher que só vi em poucas fotos. Baixinha, prendadíssima, cedo perdeu a saúde devido à eclâmpsia, uma das palavras mais tenebrosas da língua portuguesa até hoje para mim. Tanto medo lhe tenho, que esta foi talvez a primeira e última vez que a escrevi na vida, pois ela parece carrear todos os maus agouros da Terra. Aluna brilhante e ela própria professora do Santa Sofia – “laureada de turma e formada na primeira turma de docentes”, como diz mamãe até hoje quando fala de minha avó -, antes do fim da Guerra Maria Laura já estava acamada. E assim passaria boa parte do resto de seus dias. “Tinha vezes que ela não nos reconhecia. A pressão subia às alturas e o médico dizia que não sabia como ela ainda estava viva”, foi o que ouvi muitas vezes na vida. De mais, ela também perdera uma filha pequenininha chamada Silvia, um nome que até hoje faz com que simpatize com qualquer mulher assim chamada. Já tia Nicinha, na verdade, era sobrinha de vovô. Perdera um irmão e o pai precocemente no Recife. Por conta de tanto infortúnio, fora viver com as primas e sempre foi uma unanimidade entre elas: “Nunca deu trabalho, nasceu educada e gentil”.
Assim sendo, nas noites em que dormi naquela casa onde nunca morei, tenho vaga lembrança das pessoas que, de braços cruzados, levavam uma mão ao queixo, como é comum em Garanhuns quando se quer exprimir desolação e empatia, e diziam a mamãe: “Descansou, não foi? Mas que alma boa ela tinha”. A bondade de minha avó era proverbial tanto quanto seus atrasos, hábito que se calcificou entre muitas de suas descendentes. Certa vez um assassino fora exposto à execração pública. “Coitado”, disse ela. Minha mãe conta que meu avô ficou indignado. “Como coitado, Maria Laura? Isso é um monstro”. Mas ela redarguia que era um motivo a mais para que se apiedasse dele. Ao ouvir essa história muitas vezes, pouco se me dava saber mais sobre o assassino, mesmo porque querer matar alguém poderia acontecer a qualquer um, a depender da circunstância. No máximo, iria para o inferno que, no jogo de tabuleiro, era representado por um diabo vermelho, um enorme tridente e um caldeirão fumegante. Já a bondade, esta parecia ser de mal alvitre. Acaso a bondade salvara minha avó do sofrimento daquela doença infame? Logo a bondade nunca me pareceu uma virtude que agregasse à felicidade. E assim talvez seja até hoje, muito embora eu possa abominar a maldade.
Quanto aos atrasos, mamãe nunca deixou de relembrar as viagens de trem para o Recife. Logo cedo, meu avô começava a olhar o relógio. A bagagem subia para a estação enquanto na cozinha preparavam-se os sanduíches de carne de porco, os frangos assados e as fatias de fritada para enfrentar a longa viagem. Quando a locomotiva já estava a postos para a partida, eis que aparecia minha avó sem pressa alguma, para grande desespero de vovô. Daqueles dias, sei que um gato amarelo chamado Alfeu era velho morador da casa, talvez desde o final da década de 1940. Antes dele, mamãe tivera um bichano preto de patas alvas, sintomaticamente chamado de Botinhas Brancas. Este eu não conheci. Dos bichos que passaram pela casa da rua do Recife 122, o que mais deplorei não ter conhecido foi o macaco que gostava de fazer aparições no muro, de onde só descia para fazer estripulias. Delas a mais notória foi o furto do cachimbo aceso da lavadeira. Serelepe a mais não poder, mamãe dizia que o macaco ficara dando vigorosas baforadas enquanto a lavadeira, enfurecida, lhe atirava pedras na esperança de que ele devolvesse a peça de estimação. Acredito que eu não tinha sequer dez anos quando a casa foi vendida depois de discussões acaloradas em família em que se destacava a palavra inventário, outra que abomino. Voltei lá apenas uma vez. Custa-me acreditar que não mais exista.
Fernando, volte mais com as suas reminiscências de Garanhuns. É possível que tia Lili – Maria dos Santos Maciel, que todo mundo chamava Lili, nasceu antes de 1920, estudou no Santa Sofia, onde foi professora, tenha conhecido a sua vó.
Caro amigo,
Você é um leitor que me envaidece. Talvez por essa característica tão simpática de sempre querer um pouco mais. Ora, para quem viveu proporcionalmente tão pouco em Garanhuns, até que me esforço bastante para arrancar essas reminiscências e tentar dar-lhes forma minimamente palatável.
Voltar com mais? Vou tentar, vou explorar outros endereços, outras recordações. Como me negar diante de um pedido seu? Folgo, ademais, de saber que você tem uma tia centenária. Minha avó teria hoje pelo menos uns 115 anos. Mas já se foi há mais de 60.
Abraço,
Fernando