Recife, 19.04.2019
Gorki foi nosso Cocker Spaniel, que, aos treze anos, devido a um agressivo melanoma, tivemos de sacrificar. É o nosso terceiro cão, que, somando-se ao tempo de convivência com os que o antecederam, chega quase aos nossos 40 anos de casados.
Entre a cirurgia, quando teve metade da mandíbula extraída, e o seu fim, foi objeto de muita reflexão sobre os frágeis e insondáveis mistérios da vida e da morte. Fonte de alegria no cotidiano, ocupando um importante espaço em nossa estrutura afetiva, um animal de estimação enriquece nossa existência, quer seja pela responsabilidade em cuidar dele, pois, sempre dependente, nos força a alimentá-lo e tratá-lo durante toda sua vida, quer seja como companhia, sempre carente de contato físico, carinho e atenção.
Em uma sociedade onde o trabalho e a pressa do cotidiano são fatores que esmagam nossa existência, muitas vezes tornando-a monocórdica, um animal nos impõe uma parada, às vezes involuntária, para descermos e caminharmos com ele pelas ruas e praças, ou simplesmente, como Gorki fazia, ficar ao meu lado, quando, da minha rede na varanda, contemplava o horizonte.
Só quando o perdemos é que nos lembramos de valorizar esses momentos, pois sem ele estaríamos inevitavelmente presos a algum canal de comunicação, entupindo-nos de informação e propaganda – um tipo de relação que, se é muitas vezes valiosa, ao transmitir conhecimento, outras vezes nos desumaniza, transformando-nos em alvos dos algoritmos que regem os mercados, nesta era da informação.
Talvez o cão tenha sido o primeiro animal que, durante a evolução humana, aproximou-se do homem, inserindo-se na dura vida das pequenas tribos que viviam da caça e da coleta, há cerca de 15.000 anos, e exercendo o importante papel de ajudar na caça e na proteção contra as ameaças de outros animais, ou de nosso pior inimigo natural: o próprio homem. Nessa sua longa trajetória, esteve nos castelos e nas ruas, nos campos e nas cidades, junto a reis e plebeus, ricos e pobres, nos quatro cantos da terra, sempre marcando sua presença atávica de proteção e companhia do homem, Enfim, um personagem que acompanhou todo o processo civilizatório da humanidade, presente nas mais diversas culturas: das estepes siberianas à Terra do Fogo na Patagônia, do Extremo Oriente às Américas.
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Com sua linguagem própria, o cão estabelece uma impressionante comunicação com seu dono. Com Gorki não foi diferente, era um membro da família, com identidade e demandas próprias, e assim como filhos e netos, compondo e complementando nossa frágil, fugaz e misteriosa existência. Em meu site[1], onde tento registrar com meus escritos minhas reflexões sobre política e sociedade, abro espaço para registrar a convivência de Gorki com nossa família, durante 13 anos. Uma forma de homenageá-lo, mas também uma profunda e humilde reverência ao tempo, esse inexorável atributo da nossa existência, que demarca, a cada segundo, a finitude da vida.
Na noite em que o encontramos salivando sangue, e já sem forças para andar, tomei a difícil, porém esperada decisão de fazer a eutanásia, para poupá-lo do inevitável e desnecessário sofrimento que a doença provocaria. Perdi o sono, choramos abraçados, eu e Elba, impotentes diante da morte. Acordo às quatro da madrugada para meditação e yoga, abro os Upanishads e encontro um valioso parágrafo sobre a relação do atman individual com o atman universal. Os Upanishads, uma leitura que venho fazendo há algum tempo, estimulado pela leitura de Artur Schopenhauer,[2]são os mais antigos registros da visão do homem sobre si mesmo, e sua inserção no universo.
Abro aqui um parágrafo, para apresentar alguns conceitos básicos dos Upanishads. O Prana é a energia universal que nutre tudo o que tem vida. Todo ser vivo é suprido, mantido e extinguido por ele. Ele atua na respiração, na alimentação, na excreção e reprodução. Quando se exaure no indivíduo, vem a morte. O Brahman é o absoluto, ou seja, tudo que existe e, subjacente a ele, opera uma instância que é o Atman. A essência de todo ser vivo é o seu atman. O inglês o traduziu do sânscrito por Self, podemos usar espírito, no sentido filosófico, e não necessariamente no místico. Seria o atman, portanto, nossa mais profunda essência, que, apesar da nossa individualidade, não se desprende do Atman Universal, apenas nos habita temporariamente. Para os Vedas não há dualidade na realidade, tudo é um todo integrado. A morte é a volta do ser ao Atman Universal. Todo este processo não é necessariamente consciente. Durante séculos, várias escolas filosóficas surgiram na Índia, e algumas interpretam os Upanishads como um livro religioso. Outras, materialistas, como uma profunda e valiosa percepção do homem sobre suas origens e destinos diante do tempo, da morte e do universo – próxima da abordagem da ciência ocidental.
Retomo agora ao texto lido por mim, durante a madrugada em que teria de decidir sobre a morte de Gorki. Escrito há oito séculos A.C, os Upanishads descrevem, numa linguagem alegórica, a relação entre o Atman, o Brahman e o Prana.
“Dois pássaros sempre unidos e conhecidos pelo mesmo nome (Atman) estão juntos, empoleirados na mesma árvore (Brahman). Um deles (o atman individual) come os doces frutos da árvore (Prana); o outro observa sem nada comer (O Atman Universal)” ( Mu.Up. III)
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A eutanásia.
Enquanto Elba, silenciosamente, chorava lá fora, decidi ficar ao lado dele. Entrei na sala e ele estava me esperando. Estava deitado e fez um esforço, levantando-se para me receber em seu último leito, deixando as pernas traseiras, já sem forças, arriadas. Abracei-me com ele e o fiquei alisando, tentando não perder o controle. A enfermeira, num silêncio solidário, também o alisava. Ele me olhou de um jeito que fica difícil de interpretar, mas eu diria de um jeito “quase humano”, de quem não estava entendendo bem o que estava acontecendo. Encostei minha cabeça na dele, e um hábito que ele tinha desde novinho, que era mordiscar o lóbulo da nossa orelha, foi repetido. Mesmo com a focinheira, e só com a metade da mandíbula, ele, com esforço, lambeu a minha orelha. Surpreendido por este seu gesto de afeto, em um momento de dor, desabei.
Logo chega a médica que, com muito jeito, aplica-lhe o primeiro sedativo. Ele vai cedendo e lentamente se deita, como quem vai tirar um cochilo. Mais alguns minutos, e nova injeção, desta vez a anestesia mais forte. Os olhos, que ainda estavam abertos, fecham-se. Eu continuava alisando-o, pensando no seu atman e no retorno deste ao Atman universal. Olhos cerrados, em profundo sono, agora a médica injeta o produto químico que faria seu coração parar. Com o estetoscópio ela monitorava as batidas do coração e, em segundos, tudo estava consumado. Partiu, para sempre, Gorki, que fez parte das nossas vidas durante 13 anos, enriquecendo e compondo o nosso universo familiar e afetivo – e, contra toda a lógica, como um animal, nos humanizou.
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[2]O Mundo como Vontade e como Representação Vol. I (Ed UNESPE)
Terno, comovente.
Compartilho sua dor pois passei por isso quando tive que despedir do Pituca. So que nao época nao praticava meditação, e nao tive todo este sentimento que você teve. Há deficiências em todo nós.
Obrigado Eliminar pelo seu comentário. Guardarei sua última frase, curta e plena de sabedoria
Compartilho sua dor pois passei por isso quando tive que despedir do Pituca. So que nao época nao praticava meditação, e nao tive todo este sentimento que você teve. Há deficiências em todo nós.
Caro João, desabei (para usar seu termo) ao ler seu texto da despedida de Gorki. Há seis meses passei pelo mesmo sofrimento ao ter que sacrificar meu querido labrador pretinho de patas brancas e olhinhos amarelos, de 6 anos, com leichmaniose em fase terminal, após anos de tratamento. Na hora final o mesmo procedimento no ambiente para a eutanásia: ele me olhou, confiante em mim, sem entender o que se passava, mas seu olhar entendendo minha tristeza no primeiro sedativo. As duas fases seguintes me pesam como uma laje ao lembrar.
Comoventes suas palavras à vida.
Obrigado Rosa. Espero que meu texto, embora triste, tenha lhe ajudado. Um abraço