Fernando Dourado

Pelé.

 

1. Pelé está bem doente. Como sabemos, ele é eterno na dimensão do futebol. Daqui a 100 anos, gerações ainda conversarão sobre o Rei, muito embora a escassa documentação de seus feitos – comparada ao acervo de outros craques que eclodiram no começo do milênio -, o deixará em alguma desvantagem. Na esfera implacável da vida, porém, sabemos que Pelé é mortal. E a morte vem flertando com Sua Majestade já há algum tempo. Assim, da mesma forma que mais cedo ou mais tarde ela nos sequestrará desse mundo de poucas glórias e muitos fracassos, Pelé também tem passagem comprada para embarcar no comboio insólito que o conduzirá à vala da última parada. Quando morrer, o mundo não falará de outra coisa por dois dias. Nas redes sociais, muita gente dirá que o Brasil não merecia tamanha desdita. Se Sarney já não tiver morrido então, será uma verdeira calamidade. “Como pode?” Nesse dia fatídico, jornalistas com os ares da nostalgia empostada, vão abrir as comportas do coração. Uns chatos e renitentes, desses que gostam do bordão “meninos, eu vi”, dirão que certa tarde de domingo no campo acanhado da rua Javari, até os torcedores da Juventus se emocionaram com a jogada do negrinho endiabrado da Baixada que, segundo os dizeres caros à categoria, “só não fez chover”. Outros tantos, com voz embargada, insistirão em que passa da hora de esquecer as bobagens que Pelé disse. “Pensando bem, não havia porque crucificá-lo quando ele afirmou que o brasileiro não estava preparado para votar. Quase 40 anos depois, a gente agora sabe que não estava mesmo. É tempo de deixar o Edson Arantes do Nascimento em paz e de louvar o Pelé”.

 

2. Mas lá mesmo nas redes sociais lacrimosas, ouviremos amplificadas as vozes inconfundíveis dos haters que, já em abril de 2019, enquanto Pelé luta contra uma infecção num hospital de São Paulo, logo depois de uma internação parisiense, trombeteiam que todo o sofrimento que os cálculos renais lhe infringirem são merecidos. Que o “atleta do século” faz jus sim a todas as penas cabíveis, e que é justo que venha sentindo dia após dia o hálito gelado da morte que se acerca. Todo esse ressentimento decorre do fato de que lá atrás, Pelé não quis se relacionar com uma das filhas que teve, mesmo depois do reconhecimento legal da paternidade. Ora, por infeliz coincidência, a boa moça veio a falecer prematuramente, sôfrega pelo afago paterno que, como sabemos, nunca chegou. Cada um acha uma forma de dizer o que pensa a respeito. “Sofra e tenha muitas dores. Vá se lembrar da filha desprezada. Terá muito tempo para isso”, escreve Dito Manga Bocaina. “Jogador mediano do tempo que não havia treinamento especifico. Nem chega aos pés de Ronaldinho Gaúcho, Messi ou Cristiano Ronaldo”, diz Elio Santos. “Ele não respeitou sua própria filha. Para tudo tem o seu momento”, diz Odilon Campinas, cheio de bile. “Esse senhor é apenas um velho jogador de futebol que está se despedindo do mundo pela porta dos fundos”, diz um sujeito autodenominado The Big One. Por trás da amargura, a solidariedade de todos à filha indesejada, à moça que foi ignorada, apesar de ter dito reiteradas vezes que não pretendia entrar no testamento do pai, ou reivindicar parte da herança. Para todos os efeitos, foi por avareza que o Rei ignorou-a.

 

3. Não ignoro, até por estar falando nisso, que o Brasil é o estuário mór dos chamados filhos de mães solteiras. Quem é de minha geração, portanto uma depois da geração de Pelé, muito provavelmente viveu situações em que namoros fortuitos e relações efêmeras deram ensejo a alarmes de gravidez que quase sempre caíam como uma bomba. Conheço alguns homens que se casaram por conta disso. Muitos só mantiveram o relacionamento até o filho nascer como forma de reparar um possível dano à honra da mãe. Outros estão casados com essas mesmas mulheres até hoje e têm filhos de 30 anos, 40 anos ou mais. Conheço outros que deixaram o tempo passar e a gravidez não se confirmou, posto que era tão somente um balão de ensaio da moça para por à prova a solidez do vínculo. Conheço aqueles que contribuíram financeiramente para que a mulher fizesse um aborto decente e seguro. Sei de outros tantos que passaram a ignorar telefonemas, e lembro até de um indivíduo bem específico, meu amigo até uns anos, que ameaçou denunciar a namorada à polícia se ela abortasse, por considerar isso um crime imperdoável. Conheço mães que insistiram em ter filhos à revelia do pai, e pais que ficaram felizes, indiferentes ou revoltados com o nascimento da criança. Conheço pais, por fim, que queriam que a mãe desse à luz ao embrião recém detectado, mas a mãe se recusou, sob a alegação de que já cumprira sua “cota”. De mais, há mil matizes que cruzam algumas das situações acima, inclusive com sérios agravantes.

 

4. Assim sendo, busco atenuantes para apor diante dos que, insanamente, apedrejam Pelé por ter ignorado os pedidos de reconhecimento e amizade da filha, esta de nome Sandra Regina. Ora, sendo o Brasil um dos países mais populosos do mundo, e talvez o mais promiscuo – muito mais do que a China, a Índia, a Indonésia e, provavelmente, até mesmo do que os Estados Unidos -, é de se esperar que pululem por aqui os casos que aparecem a três por quatro na TV, em que filhos e filhas lacrimosas vão evocar o estado de abandono, de desmazelo e de indiferença a que foram relegados. Numa audiência formada por milhões de carentes televisivos como a nossa – repito, milhões -, é normal que as pessoas se identifiquem com a parte queixosa. Para os que se vêem retratados nos novelões que Faustão, Gugu, Huck, Silvio Santos e Datena trazem à baila, pouco importa que o pai de fato tenha sido a pessoa que criou-os. Pai para eles é que quem teve a relação sexual fatal com sua mãe, pouco importa se fortuita ou perene. Em tempos idos, é bom que se diga, a paternidade foi objeto de alegações vazias e muito homem deve ter subido o patíbulo com dúvidas, por conta de uma acusação de comprovação inverossímil. Afinal, era a palavra de uma contra a de outro. Com o advento dos exames de DNA, o panorama ficou menos turvo, muito embora isso continue a ser uma indústria em certas plagas. Não corresponder à expectativa de um(a) filho(a) é falta grave até para os criminosos, na estranha hierarquização dos gravames da penitenciária, que lhes permite chacinar a população de um asilo de velhos, mas nunca, talvez jamais, questionar a paternidade, quase sempre negada à maioria dos delinquentes, gerando as disfunções por todos conhecidas. Do equívoco das mães, é curioso, ninguém fala.

 

5. O que quero dizer é que acho absurdo que Pelé seja julgado a partir da renitência em ignorar Sandra Regina. Se uma gravidez imposta a um pai qualquer já suscitava naqueles anos as cautelas que conhecemos, o que não dizer quando se tratava de um homem de fama planetária, que poderia ser facilmente confundido com um bilhete de loteria premiado? Se houve, portanto, relutância em admitir que a menina era sua filha, e se mais adiante a ciência revelou-o como fato irrefutável, como querer impingir a existência de um laço afetivo que, na verdade, nunca se construiu? Aliás, abramos os parênteses devidos. O universo do entretenimento é fértil em paternidades precoces e contraditórias. Neymar tem um filho que, por muito pouco, não tem a mesma idade que ele. O funkeiro Mr. Catra morreu aos 50 anos com 32 filhos reconhecidos. O popular Zeca Pagodinho, extrapolando o corolário afetivo do subúrbio de Xerém para o inusitado, se jactou certa feita de que sua mulher teria amamentado os filhotes de uma cadela que, a seu turno, estava extenuada depois do parto da imensa ninhada. Dito de outra forma, o Brasil “que o povo aclama” é muito sensível ao tema. E digo: sabe-se lá o retrato que a mãe fez do pai? Sabe-se lá do desgaste emocional do pai diante de um pugilato que ele teve precocemente que dar por perdido, mesmo porque não há calúnia materna que o amor paterno neutralize? Sabe-se lá o quanto a mãe instrumentalizou o(a) filho(a) para aplacar outras dores?

 

6. Em igual medida, não quero que Pelé seja julgado apenas pela vertente que me toca de cheio, que se resume ao encontro mais longo que tivemos. Rebobinemos o filme para dar vez à pauta mundana. Pelé já tinha deixado a vida de atleta. Estava eu com dois amigos da Catalunha no restaurante Leopoldo, no Itaim Bibi, em São Paulo. Eram eles Enrique Maier e seu sócio, um homem corpulento e ansioso chamado Xavier Ribò que, naquela noite, destilava mil ressentimentos. Isso porque descobrira que a filha, de 22 anos, estava saindo com um sujeito que tinha sido seu colega de turma na faculdade, ele também com 46. Nada parecia aplacar aquele desassossego. Até que, de repente, ambos os convidados ficaram transfixados por alguma coisa, ou por alguém que cruzara o umbral da porta. Por instinto, já imaginei para onde correríamos se fosse um assalto. Mas felizmente, não era disso que se tratava. Era simplesmente Pelé que entrava ali, distribuindo simpatia. Serviram-nos de mais uísque e, ato contínuo, tudo mudou. Então era ele? Sim. Eu tinha certeza? Claro. E, agora, o que fazer? Calma, eu disse, temos tempo. Deixei a poeira assentar. Eles já tinham perdido a fome e se desesperavam por não ter trazido uma máquina fotográfica. Que estúpidos tinham sido. Será que a casa não dispunha de um fotógrafo plantonista para registrar o momento? E que pena não terem uma bola para o Rei autografar. A ansiedade tomou conta da mesa e vi que nada de bom poderia resultar da abulia. Era hora de agir.

 

7. Fui então ao balcão onde Pelé conversava com um amigo. Pedi licença e dei o recado: “Bicho, me ajude. Estou com dois catalães aqui, desses que vão ao Camp Nou toda semana. Os caras sabem até a escalação do Cosmos onde você jogou. Avalie a do Santos. Dê uma passadinha na mesa, diga um oi, gaste lá 30 segundos e ficarei agradecido e aliviado”. Então indiquei onde estávamos. Ele pediu licença ao amigo e me puxou pelo cotovelo, a voz inconfundível: “É melhor irmos agora, depois vai ficar complicado, vai chegar muita gente”. Os catalães levantaram-se de olhos brilhantes com a coreografia bem executada e passaram talvez os dez minutos mais felizes de suas vidas. Nunca mais pararam de me agradecer. Pelos anos seguintes, se a hospitalidade em Barcelona sempre fora de primeira, o fator Pelé tornou-a melhor. Enquanto papeavam à mesa, um filme passava pela minha cabeça. A primeira vez que eu o vira jogar no Recife, numa partida entre Náutico e Santos, uma das poucas a que papai me levara. A vez em que eu estava em Acco, Israel, em 1976, e vi meninos jogando futebol a metros da pequena mesquita debruçada sobre o Mediterrâneo. Então, ao pedir a bola para fazer umas embaixadinhas, como forma de dar prova do máximo de virtuosismo a que podia me permitir, os meninos de fala árabe brincavam: “Belé, Belé”. Ah, e o depoimento clássico de Galvão Bueno: “Senna gostava de privacidade nos restaurantes. Já Pelé fica angustiado se passar mais de um minuto sem dar um autógrafo”.

 

8. A morte de Pelé assinalará um dia triste. Oxalá demore ainda alguns anos para acontecer e que estes mesmos anos tragam algum alento  a um homem que conheceu todas as glórias e cuja alegria de viver parece ter se esvanecido em alguma medida. É sintomático que esse Brasil lacrimoso e solidário às dores de Sandra Regina quase nunca faça alusão a um caso igualmente malfadado da equação familiar do Rei. Refiro-me a seu filho Edinho, ex-goleiro, precocemente tragado pelas teias do crime organizado na Baixada Santista. Se a personade Pelé infringiu algum mal a alguém – este sim, a ele ligado por nome, gênero, ofício e convívio -, Edinho seria o alvo preferencial a apontar, mesmo porque foi criado como filho inconteste. Ocorre que Edinho não se insere na categoria daqueles por quem se vertem lágrimas nos programas domingueiros. O Brasil bastardo, aliás, vê em figuras como ele uma espécie de referência torta de sucesso, e confere-lhe uma aura distinta da que vitimou sua meia-irmã. Pelé é avaliado por este Brasil pelo que não foi, bem mais pelo que foi. Acho portanto que teremos dado um grande passo no dia em que as injúrias se endereçarem menos aos pais, mas também às mães que tiveram filhos à revelia da vontade paterna, por quaisquer que fossem as razões – as de instinto ou aquelas simplesmente ligadas ao desejo de ter na criança um liame que lhes valesse um lugar no coração paterno. Mas, enfim, quem disse que reis dão bons pais? Pelé não terá sido a exceção à regra. Tant pis.Viva Pelé!