Para Joaquim Inácio Brito

A palavra epopeia, em acepção mais ampla, é designativa de narração, em verso ou prosa, de eventos heroicos de indivíduos, através de gerações. Com este conceito, no nosso país, conhecemos apenas as antigas sagas de gregos e troianos, de cavaleiros medievais e outras remotas figuras históricas.

Uma exceção pode ser encontrada no caso do livro “…a Seara de Caim”, de Rosalina Coelho Lisboa, em que o enredo começa com o final da Guerra do Paraguai e a abolição da escravatura no Brasil, e vai até os movimentos revolucionários de 1922 e 1924, em que a figura indômita de Siqueira Campos conquista, merecidamente, a admiração da autora. No entanto, a obra caiu no esquecimento.

É surpreendente que tal aconteça, pelas circunstâncias que envolviam a romancista.  Ela era nascida na cidade de Areia, que viveu fases de grande prosperidade no Brejo Paraibano, com base nas culturas de cana de açúcar e café, importando adereços femininos diretamente de Paris, e oferecendo à cultura nordestina valores como o latinista Joaquim Silva, o modesto professor que empatou com o grande Tobias Barreto, em concurso para a cátedra da Faculdade de Direito do Recife.

Além disso, era filha do senador paraibano, da República Velha, Coelho Lisboa, e esposa do Embaixador Antônio Larragoiti. A obra traz duas nobres apresentações: de André Maurois, ícone da literatura e membro da academia francesa, e Gregório Marañon, da Academia Espanhola de História, Belas Artes, Medicina e Ciências Exatas.  Estes, ao lado de outros comentadores de renome, chegam a comparar o romance com “A Cabana do Pai Tomás”, de Harriet Beecher Stowe, e “Guerra e Paz”, de Tolstói.  E apesar de tudo isso, eu só tive do livro uma breve referência, quando menino, por parte da minha mãe, e só fui fazer sua leitura há pouco, por sugestão do colega a quem dedico este comentário.

Temo que o mesmo aconteça com o livro aqui sob resenha, do meu amigo Fernando Dourado Filho, que, por todos os títulos, não merece tal destino. Trata-se de uma epopeia que começa ao final da II Grande Guerra, quando o judeu Szymon, com sua filha pequena, consegue fugir da Hungria, escapando à “Solução Final” de Hitler, que já havia imolado a sua esposa.  Vindo para o Brasil, de início em São Paulo, depois no Recife, retoma a vida, primeiro como mecânico, depois como empresário, casa-se com uma judia brasileira e constitui nova família, com mais um casal de filhos. A narração vai até o destino desses filhos e netos, inseridos na vida brasileira e vivendo experiências as mais diversificadas.

Impressiona o vigor e a fluidez da narrativa, retratando as opções de vida da família, no contexto das transformações de um país novo, tão diferente da velha Europa. Os percalços da nossa vida política são vivenciados, e daí surgem as escolhas, as vezes extravagantes, dos jovens herdeiros.  O autor recorre a um recurso original, colocando em itálico, no início de cada capítulo, algo como uma carta, uma reflexão, uma página de diário de um dos personagens, antecipando o que vai acontecer adiante, e assim estimulando a leitura.

Em minhas conversas com Ariano Suassuna, ouvi dele a observação de que parte do valor de uma obra ficcional é devida ao que ele chamou de “força dos personagens”.  E posso dizer que os protagonistas e figurantes de “O Halo Âmbar” são caracterizados com tanta acuidade, tanto olho crítico, tanta sensibilidade, que bem se enquadram no conceito de Ariano.  Enfatizo os perfis do patriarca Szymon, da matriarca Brenda e de sua enteada, Hana, comoventes, de tão reais. Um certo grau de artificialismo vi apenas na concepção do filho Bóris, que, apesar de portador de TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade) e de esquizofrenia – com sua habitual confusão entre fantasia e realidade – torna-se bem-sucedido empresário internacional, rico e esnobe.

Através de mais de quinhentas páginas, a escrita avança cheia de verve, às vezes crua, às vezes pitoresca, sem que o leitor perca o interesse em nenhum momento.  A obra foi concebida ao longo de uns cinco anos, com algumas interrupções, tendo seu pique durante a recente pandemia, quando o autor permaneceu, por quase um ano, confinado em Paris, cidade em que já havia morado e estudado por vários anos. Curiosamente, o livro termina quando a moderna praga se anuncia.

Vale-se o autor, em toda a narrativa, de sua riquíssima experiência internacional. Tendo estudado e morado em diversos países europeus, bem como num kibutz israelense, e, trabalhando em aberturas de mercados para empresas, visitou quase o mundo todo, fala várias línguas e conhece os hábitos de muita gente. Pelas numerosas referências que faz de palavras e expressões em francês, russo, árabe, iídiche, hebraico e húngaro, inclui, ao final do livro, um glossário com as traduções. Algumas palavras foram esquecidas, mas já soube que uma segunda edição está em perspectiva, preenchendo as lacunas.

E para finalizar, uma ressalva.  O título e a foto da capa me pareceram um tanto enigmáticos, não remetem diretamente ao enredo. Mas talvez a observação que aqui faço atice a curiosidade de potenciais leitores, que convido, neste ato, a mergulhar no denso e matizado universo que Fernando Dourado Filho nos prodigalizou em seu “O Halo Âmbar”. Preparem o fôlego, amigos.