Fernando Dourado

Easy, family friendly cycling around Lake Constance.

I

Hoje Florence veio me visitar. Eu até imaginava que ela fosse trazer a pequena Francesca para desanuviar os ares, para ajudar-nos a desarmar os espíritos hostis que têm prevalecido entre nós, e cujas trocas andam, para dizer pouco, um tanto travadas desde a morte do pai dela. Sei que pode parecer meio oportunista de minha parte incumbir uma criança de 5 anos a que sirva de anteparo para os choques de diálogo entre a mãe largamente sexagenária que sou, e uma filha que tem metade de sua idade. Mas no meu entender, era nessa direção que apontava o bom senso. Pensando melhor, porém, não seria exigir demais de Florence? “Eu não tenho a menor razão para estar tão abalada quanto você, minha querida. O pai era seu, não meu. Não me queixo da longa história que me uniu a ele, pelo contrário. Para começar, sem Herman não teria havido você e muito menos Francesca. Mas daí a você querer, ou quase exigir, que eu ressuscite uma corrente de afeto que já não existia entre nós, é fazer prova de um narcisismo letal, quase pueril. Desculpe-me a franqueza.”

Logo me arrependi de ter dito o que disse, mas então já era tarde. Ah, a alemã indomável que dorme em mim, apesar dos vernizes de educação francesa. Tant pis.

II

Moro à beira de um magnífico lago. De todas as pequenas conquistas que pôde ter uma Hausfrau como eu, viver com conforto e amar a própria casa em todas as estações do ano foi a maior de todas. Que o digam as margaridas do verão e as rosas-de-Natal do inverno. O lado ruim, ou pelo menos o menos recomendável, é que perde-se a curiosidade de viajar nas férias, de levantar a âncora e explorar as esquinas do mundo, como dizia Herman. A bem da mais pura verdade, só de escutar relatos de excursões culturais ao Marrocos e à Sicília, parece que vou morrer de tédio. Ficar em casa passa a ser glorioso, não há espaço que se lhe compare. “Eu não exijo que você expresse o que talvez nunca tenha sentido, Mutti. Mas para mim é importante entender em que momento nasceu a história de vocês e quando sentiu que ela terminou. Isso talvez seja educativo para mim mesma, se é que isso conta para você. Não posso entender como você fica tanto tempo sem conexão com essas quadras. E que só tenha a resgatar, num momento de sentimentos tão aflorados quanto este, as passagens sombrias sobre as infidelidades dele quando você mesma nada diz sobre as suas próprias.”

Que jovem mulher lamentável se tornou Florence. E pensar que quando era pequenina, aconteceram coisas tão maravilhosas no mundo, que tínhamos todos nós o prenúncio de uma enorme primavera planetária. “Você fala como uma moralista do século passado, Flo. Nem parece que nasceu quando o Muro de Berlim estava para cair. E que cresceu cercada de mimos e alternativas. Saiba que nunca falei com amargura das escapadas de Herman, pelo contrário. Fomos pessoas de nosso tempo, apenas isso. Não dê importância ao que não tem. Vá ver que o problema está na sua geração.”

Foi então que ela respirou fundo, fez que procurava alguma coisa à volta e disse que precisava ir. “Traga Francesca da próxima vez. Sinto falta dela. Aproveitemos que o jardim está cheio de lavanda e que ainda sobra um pouco de neve nos picos. Assim faremos umas tantas belas fotos.” Ela saiu sem se despedir, e sem sequer recolher o papel de chocolate que jazia na mesinha. Nesse ponto, não puxou nada ao pai. Nem a mim.

III

Ontem afinal a curiosidade prevaleceu e fui até Konstanz, a uma hora de carro daqui, para conhecer a tal mulher de que me falara Helga Nagel, minha companheira de bridge. “Veja bem, você não tem nada a perder, Anna. Além de tudo, é uma mulher do bem, bienveillante como se dizia antigamente, que certamente não se permitiria dizer coisas desagradáveis. Não digo que só veja as rosas do caminho, longe disso. Mas vá lá e me diga depois o que achou. As duas pessoas que indiquei a adoraram, saíram mais inteiras do que entraram. E olhe que uma delas era da família real belga, uma não-me-toques que toma café da manhã de tailleur. Quando me reencontrou, foi toda beijos e abraços.”

Por que não? O que havia a temer? Na verdade, também gostei dela.

“O máximo que posso fazer será realinhar algumas energias. Será ajudá-la, cara Anna, a ver o que se desenha daqui em diante para que você possa desfrutar da melhor forma possível dos próximos capítulos.” Se este é mais ou menos o blablablá típico que imagino imperar nesses meios, gostei do alemão puro que ela falou, em que se discernia um vago sotaque do Leste, especialmente nos erres mais duros. O ponto culminante daquela hora que passamos sem direito sequer a um chá, foi quando ela disse captar uma grande vibração que eu própria já sentira um dia, e de que precisava voltar a me apropriar. Foi como ler num sismógrafo o registro de um terremoto de há muito acontecido. “Vejo aqui um outono frio, algumas crianças, uma cerimônia solene e uma angústia coroada de excitação. Isso lhe diz alguma coisa?” Então caiu num silêncio que durou mais de dois minutos. “Pode falar, se quiser, Anna.”

Comecei a balbuciar como se estivesse hipnotizada. Ora as palavras saíam em alemão, ora em francês. E de alguma forma, senti sim que reatava com uma página de forte intensidade emocional. “Era novembro, mas já fazia bastante frio. Os outonos naquela época podiam ser mais gelados do que os invernos, mesmo porque os dias eram belos e ficávamos mais tempo ao ar livre. Éramos umas 30 meninas, ou 29 se pensar bem, e pouco a pouco nos recuperávamos do trauma coletivo que fora a perda de nossa colega Ornela, uma milanesa que falecera num acidente de carro no final das férias de verão. Na mesma ocasião, os pais e o irmãozinho também tinham ficado presos nas ferragens e morrido. A imagem nos devastava. Foi então que a irmã Regina entrou para passar em revista como nos comportávamos no almoço. Cada uma de nós tinha um livro sob os braços e a ordem era terminar de comer sem deixar que caíssem. Se a brincadeira tinha um lado divertido, mesmo quando éramos obrigadas a descascar uma banana de garfo e faca, a cena era grotesca em se tratando de Brigite, uma parisiense desajeitada que nunca conseguiu chegar ao fim. Quanta falta de postura, convenhamos.

Mas naquele dia, havia uma coisa diferente no ar. “Minhas meninas, hoje excepcionalmente ligaremos a televisão. Sendo esta uma escola francesa, apesar de aqui estarmos na Suíça, é importante que vocês acompanhem com circunspecção e respeito esta transmissão. Pois hoje vivemos um luto mundial.”

Então, fiquei eu em silêncio. A vidente me olhou com bondade e uma expressão de estímulo. “Continue, Anna, continue.”

IV

Tem horas em que penso que Florence quer apenas me chocar. Chegar com propósitos os mais estapafúrdios parece dar-lhe um senso de missão, uma personalidade postiça, um minuto de ribalta, uma identidade, sei lá. Pobre mulher. “Francesca está felicíssima com Max, o gato. Segunda-feira vamos mandá-lo para a castração. A Louise, que lhe arrancou as unhas depois que ele arruinou nosso sofá, sugeriu que lhe coloquemos um implante de testículos de grande calibre. Eles são pelo menos duas vezes maiores do que os originais e são feitos de silicone. Assim Max desfilará pela vizinhança um pouco mais seguro de sua virilidade e Francesca não terá um bichano eunuco. O que você me diz, Mutti?”

Olhei-a com compaixão, mas não deixei que transparecesse na minha voz. Ou pelo menos tentei. “Acho que faz muito bem. Imagino que para efeitos de sua vizinhança chique em Vevey, esse adereço seja um plus apreciável.” Minha neutralidade não tardou a repercutir da pior forma possível. “Chique ou não, acho inadmissível que você abra a boca a três por quatro para falar mal de meu país de adoção. Bem ou mal, você estudou lá quando criança e deveria ser um pouco mais grata a um povo laborioso e sério, que simplesmente não se enrosca em dilemas existenciais por esporte, e que sabe que o caminho mais curto entre dois pontos é uma reta.”

Na cabeça pequena de Florence, ter adotado a nacionalidade do pai e, sobretudo, ter optado por viver do outro lado da fronteira, significava mais do que uma simples coordenada geográfica. “É claro que prefiro mil vezes uma vida protegida, tanto quanto possível longe dessas levas de imigrantes. E você deveria achar muito bom que assim seja, mesmo porque isso diz respeito à segurança de sua neta. Nessas horas, você deveria esquecer seu passado terrorista e pensar mais no futuro de Francesca.” Que pessoa irreconhecível, quase odiosa.

Herman era da Basileia. Conhecemo-nos quando fiz quatorze anos, e ele já cursava o primeiro ano de engenharia. Meus pais se recolhiam cedo e eu fiquei sozinha depois do jantar, passeando pelo grande terraço ensolarado da estação de esqui. Herman gostou de ver que tínhamos pelo menos três línguas em que conversar. Eu não entendia muita coisa do dialeto que ele falava, mas isso nos divertiu bastante na primeira noite. Sendo alta, apesar da pouca idade, gostei de vê-lo nos olhos, já então nivelados. Ainda teríamos um longo caminho a percorrer até que nos casássemos, lá pelo começo dos anos 1980, quando minhas privações de liberdade prescreveram. Ele me chamava de intelectual alemã, de candidata mor à agitação política – sem saber então o quanto acertaria no vaticínio, no decurso de minha ligação com Andreas Baader. Já para mim, Herman era o domador da natureza, um homem sem qualquer interesse pela engenharia social. Sua paixão eram os cabos dos teleféricos, os funiculares, a visão das ravinas profundas, o descortinar das gretas onde, a um descuido, alguém poderia sumir para sempre, inclusive ele. Eu vinha de Stuttgart e foi na Floresta Negra que passamos nossa primeira noite juntos, antes da longa separação.

A verdade é que a consulta à quiromante de Helga Nagel me remeteu com clarividência estelar àquele outono-inverno de 1970.

V

Lembrei de cada palavra de soeur Regina: “Pois hoje vivemos um luto mundial.” Étant donné que nous sommes dans une école française, peu importe que nous soyons en Suisse, il est important d´accompagner avec recul et respect la transmission suivante. Puisque aujourd´hui on vit un deuil mondial.

Tratava-se do televisionamento das exéquias do general de Gaulle, direto de sua cidade natal. Homem da admiração de meu pai, que atribuía àquele francês enorme de tão alto o galardão de “amigo da Alemanha e amigo da Europa” – pedra angular de nosso convívio e de nossa discórdia posterior -, ele já o vira de perto em Baden Baden, num encontro de cúpula com Konrad Adenauer, com quem trabalhou em Bad Godesberg. Não sei se foi por isso ou pela solenidade do refeitório mal iluminado, a cena calou fundo em mim. E não deixa de ser impressionante que a vidente de Helga Nagel tenha captado essas vibrações adormecidas. A verdade é que enquanto todo mundo acompanhava o cortejo televisado, senti um frio incomum, como se a calefação da escola tivesse entrado em pane. E já tomada de um desconforto de origem difusa, levantei o braço – agora desobrigado a agasalhar um livro -, em quase súplica à irmã Regina para que me deixasse ir ao banheiro.

Lá chegando, percebi que minha calcinha estava ensanguentada e que me acontecera o grande momento, como algumas de nós definíamos aquilo. Eu não sabia direito o que fazer. Baixei a cabeça e acho que cheguei a sorrir comigo mesma, apesar de soluçar baixinho. Que a cena era apavorante, não havia dúvida. O sangue escorria pelas pernas e já não havia como usar aquelas meias longas. Não sei bem o que fiz ou disse, mas a irmã Regina permitiu que Paola Bernasconi me acompanhasse ao alojamento e tratamos de deixar tudo em ordem. “Bem-vinda, cara. As coisas agora vão mudar um pouco, você vai ver. Certamente é meio chato, mas esteja preparada para o lado bom. Os meninos não vão mais vê-la da mesma maneira, para dizer o mínimo.”

Coincidência ou não, pouco mais de um mês depois, em meu aniversário de 14 anos, estava em Zermatt com meus pais. À mesa, papai não cansou de falar de De Gaulle. “Quando tudo estiver mais sereno, quero ir ao túmulo do general. Escrevi ao gabinete de André Malraux pedindo uma cópia do pronunciamento que ele fez em Colombey-les-Deux-Églises, no dia seguinte ao enterro. De Gaulle pediu para ser enterrado ao lado da filha. Sem pompa, sem flores, sem protocolo, sem honrarias, sem nenhuma dessas vãs glórias terrenas que seus detratores achavam que eram importantes para ele. Ouvi-o falar em muito bom alemão. Cá entre nós, ele não suportava Churchill. Mas olhava para o lado de cá do Reno com simpatia. Por que você baixa a cabeça, querida?”

Na sequência do dia, quando eles se recolheram, tive pela primeira vez uma sensação de plenitude, de alegria por não ter tido irmão ou irmã. Sozinha na grande plataforma de esqui onde víamos o por do sol mais belo da Europa, senti quando alguém se aproximou por trás de mim e ali ficou parado, só esperando que sua presença me sobressaltasse e lhe sorrisse. Foi minha primeira conversa com um homem de verdade. Muitos mais viriam. Voilà. 

Mas isso foi só o começo.