Sérgio C. Buarque

Na segunda metade da década de 70 do século passado, quando vivia exilado na Alemanha, trabalhei na Voz da Alemanha, emissora que transmitia programa diário em ondas curtas para o Brasil. Pelo menos uma vez por semana, produzia uma resenha da imprensa internacional abordando a realidade brasileira, na tentativa de driblar a censura à imprensa no país com artigos publicados nos principais jornais do mundo, quase sempre muito críticos. Ao contrário dos jornalistas brasileiros que atuavam no país, com grande risco e enorme limitação no seu exercício profissional, a redação desta Resenha da Imprensa era para mim atividade especialmente prazerosa, fazendo a crítica à ditadura com segurança e responsabilidade jornalística.

Entre os jornais de grande credibilidade, com presença assegurada na Resenha da Imprensa, estava o inglês The Guardian,com frequentes artigos dos seus correspondentes no Brasil analisando a situação polítca e social do país. Agora, mais de quarenta anos depois, artigo publicado esta semana pelo grande jornal desperta uma sensação incômoda de dúvida sobre a responsabilidade e a credibilidade dos seus correspondentes. Assinado por Dom Phillips, o artigo narra a experiência de quatro brasileiros que teriam fugido do Brasil para um inexplicável “exílio político”, como se o país estivesse dominado por uma ditadura semelhante àquela dos anos 60/80. A matéria consiste em depoimentos dos que teriam “fugido” do Brasil, como o ex-deputado Jean Wyllys, mas o jornalista abre com um título tendencioso e manipulado, falando de uma “nova geração de exilados políticos” que fugiram para continuarem vivos, e arremata, no subtítulo, afirmando que este “clima de ameaças de morte e hostilidade”  faz “lembrar a ditadura militar”. Como pode falar de exilados políticos de um país com imprensa livre, sistema judiciário independente e ativo, plena liberdade de opinião, organização e manifestação?

Depois de lembrar os milhares de exilados brasileiros da época da ditadura (de 1964 a 1985), estes sim, fugindo da perseguição de uma ditadura repressiva, o correspondente do jornal inglês afirma que, agora, “décadas mais tarde, proeminentes esquerdistas e ativistas brasileiros estão novamente deixando o país”, fugindo das ameaças de morte de extremistas de direita e de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. Oleitor europeu desavisado deve imaginar milhares de brasileiros fugindo das prisões e perseguições de uma ditadura, sem Justiça para sua defesa, ou imprensa para denúncia e crítica da violência aos direitos humanos. Matérias como essas distorcem a imagem do Brasil no exterior, e confundem mais do que esclarecem, num desserviço à compreensão da realidade brasileira e ao debate sério em torno de propostas de políticas para a consolidação da democracia e o desenvolvimento nacional.