Paulo Gustavo

É verdade que a Segunda Guerra Mundial, para o bem e para o mal, tornou-se um dos grandes marcos históricos da humanidade. Mas o passado, como disse Nietzsche, é o que de fato aconteceu, e a história é o que queremos lembrar. Mas o que queremos lembrar? A nossa memória, bem observou Proust, é como um laboratório onde remédios e venenos sempre estão próximos. Perigosamente próximos. Sem dúvida, muitas vezes tomamos uns pelos outros. Como quer que seja, a Segunda Guerra Mundial e os passos diabólicos que a precederam, malgrado uma já imensa bibliografia histórica, sempre estão a nos oferecer novos ângulos de análise e novas perturbadoras narrativas.

“A ordem do dia”, livro do escritor francês Éric Vuillard, autor ainda pouco conhecido no Brasil, é uma dessas perturbadoras narrativas que, sem embargo de serem história, trazem a marca da forma dramática e até o tom elegíaco que convém à recuperação teatral de instantes tão decisivos quanto lamentáveis da História ocidental. É a tecla elegíaca que ele toca em suas imagens fortes e irônicas para abordar a anexação da Áustria por Hitler. Vuillard imprime poesia sobre a ruína moral dos atores nazistas para reduzi-los à estatura de vermes que, na verdade, nunca deixaram de ser.

“A ordem do dia” transpira aquilo que Hannah Arendt enxergou no comportamento de Eichmann e seus comparsas: a banalidade do mal. É assim que o autor nos apresenta a reunião secreta de 20 de fevereiro de 1933, em Berlim, na qual 24 grandes industriais oferecem a Hitler apoio financeiro, mesmo sabendo que a democracia alemã em breve seria extinta. Afinal de contas, anota o narrador, “No mundo dos negócios, as lutas entre partidos não são nada. Políticos e industriais costumam se frequentar”. São 24 empresários imensamente poderosos que abrem seus cofres às ideias do Führer, sendo certo que “Todos sobreviverão ao regime [nazista] e financiarão, no futuro, muitos partidos de acordo com a performance”. São nomes, como diz o autor, que têm seus avatares em nosso cotidiano, a exemplo da Basf, da Bayer, da Agfa, Opel, Siemens, Allianz. Na imagem de Vuillard, naquela fatídica reunião, são “[…] vinte e quatro máquinas de calcular nas portas do inferno”.

Tocando de passagem nos antecedentes filosóficos do nacionalismo alemão, Vuillard não se furta a apontar o dedo para Herder, Fichte, Hegel e Schelling. É como se nos dissesse: tanto idealismo para dar no que deu e no que estava por vir. Mas, já àquela altura, fevereiro de 1933, ninguém poderia em sã consciência ignorar diversos crimes nazistas. Com acuidade psicológica que vai do individual ao coletivo, o escritor nos adverte: “As manobras mais brutais nos deixam sem palavras. Ninguém ousa dizer nada”. Enfim, perde-se a oportunidade de se reagir à altura, de se evitar a barbárie. Apesar dos movimentos bruscos da nova ordem que se aproxima, não deixa de ser “[…] curioso como até o fim os tiranos mais convencidos respeitam vagamente as formas, como se quisessem dar a impressão de que não brutalizam os procedimentos, enquanto pisam abertamente em cima de todas as práticas”.

Dosando com clareza a sua incisiva e poética narrativa, Vuillard parece buscar junto ao leitor a cumplicidade moral da mais lúcida posteridade. Sua narrativa é um desmascaramento contínuo, um exercício de desconstrução das aparências e das encenações dos poderosos do mundo. Toca o pungente, toca o patético. Revolve a dor das vítimas, em particular a dos judeus, os quais, antevendo a máquina infernal que estava sendo montada, suicidam-se aos milhares. Eles estavam sendo rebaixados e humilhados a um nível infra-humano e “A vida que amavam não existia mais. Não tinha sobrado nada”. A nota do terrível sobe uma oitava ao nos contar que, certo dia, uma companhia austríaca resolveu cortar o gás dos judeus. A razão era que eles se suicidavam “[…] de preferência com gás e deixavam suas faturas por pagar”! … Mais um pretexto para esmagá-los sob a bota autoritária e punitiva.

Prêmio Goncourt de 2017, a prestigiada láurea da literatura francesa, e este ano editado no Brasil, “A ordem do dia” vem (provavelmente não por acaso) nos advertir dos nacionalismos exacerbados que aqui e alhures, com o DNA dos nazifascismos, pode, sim, gerar novos e terríveis monstros em nossos dias. Que fique entre nós, como um grito de “CUIDADO!” e alerta, este último e pertinente aviso do autor francês: “Frequentemente, as maiores catástrofes se anunciam aos poucos”.

Paulo Gustavo