Helga Hoffmann

Estudante protesta contra o AI5.

1 – A UnB que não foi “Cambridge do Planalto”   

Quando cheguei ao Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB), em 1969, tanto o Departamento quanto a UnB estavam em reconstrução. Depois do golpe de 1964, a UnB havia perdido boa parte de seus professores: muitos haviam sido demitidos pelo golpe civil-militar e umas duas centenas mais haviam pedido demissão em solidariedade aos demitidos. Para continuar funcionando imediatamente após o golpe, a UnB de imediato não tinha sido muito seletiva na contratação de professores.

O oficial da Marinha José Carlos de Almeida Azevedo havia chegado à reitoria por conta do golpe militar. Mas era engenheiro naval e PhD em física pelo MIT, era considerado bom físico também entre cientistas contrários à ditadura, entre os quais Jacques Danon, e constava que havia ajudado a construir um bom Departamento de Física na UnB. Também tinha chamado gente competente para a área de Ciências Sociais e Antropologia. Tinha orgulho da sua vertente acadêmica e queria que ensino e pesquisa na UnB tivessem altos níveis de excelência. Ele próprio alardeava isso, e eu mesma ouvi dele a história de que, quando chegou à Reitoria e começou a examinar currículos dos professores, encontrou alguns que no item “Títulos” haviam colocado “Título do Iate Clube de Brasília”. Não estava inventando. Na minha experiência, o Comandante Azevedo não controlava ideologia dos que vinha contratando, e sim a solidez do currículo. Mas tinha também sua vertente autoritária, que preponderou mais tarde. Mas aí eu não estava mais na UnB. Ele me contratou em 1969 e ele me demitiu em 1973.

No início dos anos setenta, quando começaram a chegar à UnB os economistas com boas credenciais de universidades americanas, eu já estava lá no planalto. Havia chegado em fins de 1969, junto com o sociólogo Mauricio Vinhas de Queiroz (o autor de “Messianismo e Conflito Social”), com quem eu era casada, e que havia negociado com a UnB a contratação dele para o Departamento de Ciências Sociais como um “pacote” que incluía a mulher. Para ir para Brasília com Mauricio pedi demissão da Fundação Getulio Vargas, que então tinha a EIAP (Escola Interamericana de Administração Pública), um projeto do BID no Rio de Janeiro. Na EIAP fui pesquisadora e depois professora. Lembro que quando me despedi do meu chefe, Professor Athyr Guimarães, ele ainda perguntou: “você tem certeza do que está fazendo? Pode acabar caindo entre duas cadeiras, parar no chão.” Proféticas palavras, não sei se as reproduzo com exatidão, tantas décadas mais tarde.

Lembro de quem já estava lá no Departamento de Economia da UnB. Também recém-chegados, Ricardo de Araújo Lima e um jovem mineiro, Álvaro, que morreu pouco tempo depois em um acidente de automóvel. Dentre os antigos, mais velhos que os que estavam chegando, chamavam atenção Lauro Campos, ora keynesiano-marxista ora marxista-keynesiano que aprovava todos os alunos sem provas, um professor vindo da Universidade Federal do Piauí, circunspecto, que a gente chamava de Santanão, e Dércio Garcia Munhoz, funcionário do BB e dedicado professor de comércio internacional.

Durante o seu melhor momento de 1972, quando se organizaram os exames de ingresso dos alunos da primeira turma do mestrado em economia, o Departamento tinha reunido um bom número de economistas jovens de excepcional reputação acadêmica: Edmar Bacha, que liderava o grupo, Francisco Lopes, Dionisio Dias Carneiro, Luis Paulo Rosenberg e Elca Rosenberg (que ainda era a mulher dele), Flavio Versiani e Teresa Ribeiro de Oliveira (que ainda era Versiani), Lance Taylor (vindo de Harvard, posteriormente dedicado a economia ambiental), Charles Mueller, Antonio Dantas Sobrinho, Carlito Zanetti, José Antonio Santana.

Da preparação do mestrado eu não fazia parte. Pois se nem mestrado eu tinha. Eu vinha da vertente cepalina do fim dos 1950s, que ainda era protecionista, nacionalista e estatista naqueles tempos pré-globalização. Rótulos que estou colocando agora. Tinha decidido virar economista porque ainda acreditava que o planejamento econômico ia acabar com a pobreza. O que, aliás, se revela no Caderno do Povo no. 14 “Como planejar nosso desenvolvimento?”, que em 1963 vendia em banca de jornal. Ao menos coloquei uma interrogação! Antes tinha feito filosofia na Universidade do Brasil, e tudo o que tinha aprendido de economia vinha de um curso do Centro BNDE/CEPAL (que formava o que se chamava então TDE, Técnico em Desenvolvimento Econômico), e de trabalhar no ISEB com Ignacio Rangel. E, depois de 1967, de trabalhar na Escola Interamericana de Administração Pública da FGV, trazida por Gilberto Paim, que também havia trabalhado com Rangel no ISEB. Acho que eu entendia de contas nacionais mais por gostar do Isaac Kerstenetsky, o fundador das contas nacionais no Brasil. Em 1963 eu havia decidido regularizar minha situação de economista fazendo o curso em uma faculdade particular que existia na Praça XV. Obtive o diploma em 1968, sem esforço.

O Departamento na UnB fazia rotação das matérias entre os professores, com o propósito de obrigar a uma atualização. A mim determinaram um ano que desse o curso de microeconomia na graduação. Tive que estudar. Foi só então que aprendi o que era um modelo, e o papel que desempenha um modelo na teoria econômica.  A experiência de Brasília teve para mim um efeito transformador importante. Veio das exigências derivadas do modo em que funcionava o Departamento de Economia, que permitiu as trocas com economistas que tinham formação acadêmica muito mais sólida que a minha.

Em certas partes do Instituto de Ciências Sociais (ao qual o Departamento de Economia pertencia) havia à época algum resmungo ou irritação contra os PhDs americanos. Nacionalismo “de tacape”? Algum PhD talvez fosse de fato arrogante, mas entre professores não chegou a existir hostilidade de parte dos que não tinham formação no exterior. Entre alguns alunos, em linhagem populista, vimos reclamações contra disciplinas que passaram a ser ministradas. Nunca tiveram minha simpatia, pois já então considerava que quem deve determinar o currículo é o corpo docente. Dionísio Dias Carneiro, um grande professor, era mais radical: “Ensina quem sabe, aprende quem quer”. Meus novos colegas tinham melhor formação acadêmica, claro que eles conheciam mais teoria econômica. E tinham honestidade intelectual. Décadas depois, Dionísio Dias Carneiro lembrou que eu teria declarado, em alguma situação no Departamento, que preferia neoclássico decente a marxista picareta. Talvez estivesse pensando em nosso colega Lauro Campos e sua preguiça de corrigir provas.

Deixei Brasília em meados de 1973. Em 17 de abril de 1973 fui chamada à Reitoria, e o vice-reitor avisou que o MEC havia verificado que eu fora demitida do ISEB pelo AI5, e que havia ocorrido um duplo erro jurídico: nem ele podia ter me contratado, nem eu podia ter aceitado. Solicitou que eu assinasse um pedido de demissão. E que eu deveria devolver à UnB os salários, indevidamente pagos e recebidos. Disse tudo isso de modo gentil.  Minha resposta imediata foi que ele me demitisse, eu achava que assim teria uma indenização. Acrescentei que se tivesse que devolver quatro anos de salário eu daria um tiro na cabeça. Não houve argumento que abalasse o Ministro da Educação, Jarbas Passarinho, com quem consegui audiência que não foi exatamente agradável. Não adiantou que o ISEB fora extinto e eu abandonara o cargo vários anos antes de existir o AI5.

Anos mais tarde vi em algum lugar um registro oficial: Dispensada pelo Memorando UnB 57/73 assinado pelo Vice-Reitor José Carlos de Almeida Azevedo, em decorrência do disposto no Ato Complementar no. 75 de 21/10/69, combinado com o Decreto sem número de 07/03/69, publicado em igual data à pág. 2004 do Diário Oficial da União”. Não teve indenização. O Professor Werner Baer (que conhecia a tese de doutorado “Desemprego e Subemprego no Brasil” que defendi na USP em fins de 1972), logo conseguiu para mim uma bolsa da Ford Foundation. Já se dizia, desde o CEBRAP em São Paulo, que a Fundação Ford era “o braço amigo do imperialismo”. Com essa bolsa fui, no segundo semestre de 1973, para Cambridge, Inglaterra.

O Departamento de Economia da UnB tinha como programa enviar todo ano um professor ao exterior, para acompanhar a fronteira do pensamento econômico. Nessa época Edmar Bacha, então chefe do Departamento, ainda não tinha dito que seu projeto em Brasília era criar a “Cambridge do Planalto”. Não sei se quando usou a expressão pensava em Cambridge, Mass. ou em Cambridge, England. Ou em ambas. Optei por Cambridge, England, porque era fã da Joan Robinson. Em todo caso, foi como se tivesse sido antecipada minha ida ao exterior para “reciclagem”. Ainda saí com passaporte normal, que dois anos depois foi cassado pelo Itamaraty. A ideia era estar de volta após um ano ou dois. Somente 26 anos depois, em 1999, é que voltei ao Brasil. De fato, “reciclada”. Depois de Cambridge, primeira escala, e ONU, última escala, e, além disso, a queda do Muro de Berlim, “reciclagem” é um termo fraco.