O Presidente da Venezuela, Nicolas Maduro, disse que não vai à ONU, que vai ficar em Caracas trabalhando e prefere segurança, e que irá apresentar ao Conselho de Segurança da ONU provas de que o governo da Colômbia está preparando ataques terroristas a alvos militares na Venezuela. Mas Juan Guaidó, autoproclamado presidente desde janeiro, afirmou que terá representantes na Assembleia Geral da ONU. Pelo menos nos corredores. Para denunciar a atuação, na Venezuela, de grupos irregulares de milícias da Colômbia. Até que ponto poderá se dar uma internacionalização da “questão venezuelana”? O agravamento da situação na Venezuela é preocupação grave apenas para a América Latina e o Caribe, e não só pelo acúmulo de refugiados.
O Conselho de Segurança da ONU, convocado pelos Estados Unidos em janeiro para reconhecer Juan Guaidó, obviamente rejeitou a ideia, dada a presença de China e Rússia. O representante russo notou que a Venezuela nem deveria estar sendo discutida, pois não representava ameaça à paz e à segurança internacional. De lá para cá as preocupações com paz e segurança aumentaram, ao menos em países fronteiriços, em particular na fronteira com a Colômbia, onde Maduro anunciou instalação, até o fim deste mês, de um sistema de mísseis de defesa antiaérea.
A ONU tampouco aprovou sanções econômicas, que começaram a ser aplicadas pelos Estados Unidos em decisões unilaterais a partir do segundo trimestre deste ano. Estima-se que as sanções americanas tenham reduzido em quase 50% a produção de petróleo da Venezuela, que já vinha caindo desde 2013, com impacto negligível na economia americana. Mesmo assim há refinarias na costa do Golfo que se opõem a uma redução das compras do petróleo venezuelano por afetarem preços em alguns estados americanos, e preço de gasolina significa votos.
Continuam chegando sem trégua notícias sobre as difíceis condições de vida da população venezuelana. As mais recentes vêm de um estudo da Universidade Central da Venezuela que mostra 70% dos hospitais afetados por interrupções no abastecimento de água e luz, além da aguda escassez de insumos básicos e instrumentos cirúrgicos. Infelizmente, quanto a isso, não há muita novidade, exceto que o governo de Maduro atribui a escassez às sanções, e vai enviar à ONU um abaixo-assinado de 2 milhões de venezuelanos contra as sanções. A oposição afirma que as assinaturas estão sendo obtidas através do sistema que prevalece na Venezuela para a distribuição em espécie de alimentos e produtos de higiene pelo governo. No caso, a explicação correta é mais simples: dificilmente os nacionais de um país que nele permanecem são a favor de um embargo contra si próprios.
A hiperinflação e a desvalorização da moeda tornam qualquer medição de valor e preço sem sentido: pela taxa de câmbio do bolívar dada pelo Banco Central da Venezuela no último dia de agosto, o salário mínimo na Venezuela estava em US$2, algo sem significado concreto, não dá para comprar os alimentos de uma família para um dia.[1] Mas em paralelo ao colapso da moeda cresceu a burocracia governamental de distribuição em espécie bem como o esquema de revenda e troca informal pelos que conseguem receber itens básicos. O governo Maduro vem gradualmente aceitando ajuda humanitária das Nações Unidas e outras agências. Ajuda da Rússia e da China pode ter evitado o colapso desse sistema de distribuição.
Além das sanções econômicas e bloqueios a algumas figuras de destaque do regime e seus familiares, alguma pressão internacional se deu através do Conselho de Direitos Humanos da ONU (órgão intergovernamental), cujos países membros solicitaram ao Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos (ACNUDH) um relatório sobre a Venezuela. Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile, é desde setembro passado a chefe da ONU para direitos humanos. E pela primeira vez se organizou uma missão oficial do Alto Comissariado à Venezuela, na terceira semana de junho de 2019. Em sua visita técnica, a Alta Comissária Michelle Bachelet teve 558 entrevistas com vítimas, testemunhas, e membros da sociedade civil realizadas na Venezuela e outros oito países, e abarcou o período janeiro-maio de 2019. Também se encontrou com autoridades e políticos, inclusive o Presidente Maduro e o Presidente da Assembleia Nacional Juan Guaidó. O seu relatório indica a alta proporção de execuções extrajudiciais por forças de segurança, 793 pessoas arbitrariamente privadas de sua liberdade, inclusive 22 deputados da Assembleia Nacional e seu presidente Juan Guaidó, 66 mortos em protestos (das quais 52 atribuídas a forças do governo ou os chamados “coletivos”).
Segundo estatísticas do próprio governo venezuelano, 5.287 pessoas morreram em 2018 por suposta “resistência à autoridade”, e mais 1.569 entre janeiro e março de 2019. O relatório do ACNUDH mostra que poucos apresentam denúncias por medo a represálias, relata as restrições à liberdade de imprensa, inclusive detenção de jornalistas e criminalização das oposições.
O Relatório Bachelet tratou também da escassez de alimentos, produtos de higiene e remédios, e o fato de que vários grupos da população não têm acesso à distribuição dos alimentos, e de quantos recorrem à mendicância ao deixar o país. Falou do impacto desproporcional da crise humanitária sobre a população indígena, sobretudo em áreas de mineração. Observou a militarização das instituições. Resumiu a calamidade que já vinha sendo mostrada nos últimos anos por observadores independentes e depoimentos de refugiados. ACNUDH adverte que, se nada for feito, o êxodo sem precedentes de migrantes e refugiados vai continuar e as condições de vida dos que permanecem, e também dos migrantes e refugiados, vão piorar. Já apontou para a piora das condições por efeito das sanções que começaram este ano. Ao apresentar o relatório solicitado na 41ª sessão do Conselho de Direitos Humanos em julho, Michelle Bachelet expressou esperança de que as autoridades da Venezuela enfrentem a questão da violação dos direitos humanos e apelou para o diálogo como a única saída para a crise venezuelana.
De imediato, o representante da Venezuela na sessão classificou o relatório de “incompreensivel”, “sem rigor científico”, e omisso quanto ao “bloqueio imoral” que a Venezuela sofre.
É possível listar tentativas de promover um diálogo entre o governo chavista e a oposição (e a rigor existem diferentes oposições e até diferentes vertentes de chavismo), com patrocinadores vários, desde o Grupo de Lima, a União Europeia,o rei de Espanha, o Papa Francisco. Mas, plagiando “Bello” (a coluna de opinião sobre América Latina do The Economist), o dinossauro continua lá. E tem seus apoiadores. Não existe apenas gente indignada e latinos bem instalados em Miami que pedem uma invasão americana, chamam de desertor o presidente Donald Trump, e chegam a pedir sangue, fazendo votos para o linchamento do ditador em praça pública.
Estando descartada por ora uma invasão americana, mais ainda depois da demissão do radical John Bolton da chefia do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos em 10 de setembro último, a esperança está depositada nas sanções. De algum modo sanções teriam o efeito de levar os generais em torno de Maduro a se voltarem contra o chefe. Esta era também a esperança quando Juan Guaidó, em janeiro, acenou com anistia para os membros do governo Maduro, o que não funcionou.[2] Alguma base científica para a defesa deste boicote? Em que lugar os Estados Unidos conseguiram derrubar governos mediante sanções? Nem as da Coreia do Norte, e aquelas foram decididas no Conselho de Segurança da ONU.
Mas quem sabe as sanções tenham um efeito indireto, de obrigar o governo a participar seriamente de um processo negociador. A última tentativa, sob os auspícios da Noruega, não deve ser descartada. Já teve interrupções, quando o governo dos Estados Unidos endureceu as sanções em agosto, sem aviso prévio, e o representante do governo Maduro se retirou das negociações em protesto. Mas o representante do governo americano se declarou preparado a prosseguir nas negociações. Até que ponto Rússia e China, que têm interesses na Venezuela, poderão atenuar ou não o impacto das sanções americanas? A Rússia forneceu à Venezuela armas e especialistas em segurança, e um novo acordo de cooperação militar foi divulgado depois das sanções. E Cuba? O embargo à ilha não incentiva a sua cooperação. Poderá participar de uma negociação como possível local de abrigo de apeados do governo em Caracas? Que posição terá Maduro em uma transição? Já vimos que a anistia oferecida em janeiro por Guaidó não foi incentivo à mudança. Ninguém criticou a ideia, ela apenas não teve o efeito pretendido, ficando evidente que o círculo do poder em torno de Maduro não concordará com uma transição se não tiverem garantias de que não serão presos e expulsos inteiramente da vida política. Será preciso entender que o chavismo vai além da pessoa de Nicolas Maduro. E haverá inteligência negociadora para uma constelação tão complicada? E isso que ainda não falamos dos países da América Latina que começam a reagir mal à continua entrada de refugiados.
Na entrevista em que defendeu Michelle Bachelet de um ataque vil do Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, o Ministro de Relações Exteriores do Chile, Teodoro Ribera, tratou da necessidade de cooperação entre os países da América Latina e notou: ”A situação [da Venezuela] é um atentado aos direitos humanos e uma ruptura democrática. E é um tema que é um problema hemisférico. No Chile temos 400 mil venezuelanos para 20 milhões de habitantes. Imagine o Brasil com mais 4 milhões de pessoas em um ano. A solução da crise tem de ser pacífica, democrática, e com o retorno de parte dos refugiados. A continuação do problema pode provocar um fluxo ainda maior de refugiados. Seria uma cifra quase impossível de absorver.” (Teodoro Ribera, O Estado de S.Paulo, 08/09/2019)
A maioria dos 4 milhões que deixaram a Venezuela nos últimos quatro anos permaneceu na América Latina: a Colômbia sozinha abriga quase um milhão e meio, Peru e Equador juntos mais um milhão e tanto, e há mais de 600 mil espalhados por Chile, Brasil, Argentina, o Caribe, Panamá, México, Costa Rica (mais ou menos na ordem dos números estimados, imprecisos porque há entradas clandestinas e gente sem documento). Com o agravamento da crise surgiram alguns conflitos com a população local (inclusive no Brasil) e recentemente vários dos principais países de destino dos migrantes passaram a restringir a entrada, exigindo documentos e reforçando a fiscalização das fronteiras. Brasil e Colômbia ainda permanecem abertos, mas também ali há fricções, fora as disputas de sempre pelo uso dos recursos públicos e verbas do orçamento. A América Latina precisa de ajuda para arcar com o impacto da crise venezuelana, para além da ajuda que vem sendo oferecida pela agência de refugiados da ONU. Quem sabe, ao terem sua própria crise de refugiados, os países da América Latina passem a pressionar a Venezuela para que tanto governo quanto oposição se empenhem nas negociações de Oslo.
[1] Tratamos antes, na Será?, da economia destruída (Venezuela: o estatismo em um estado falido, 30/06/2017; Venezuela: uma economia que o estado arruinou. 25/08/2017) e das calamitosas condições de vida, que só poderiam piorar com sanções (Venezuela: a tragédia e a ameaça, 23/11/2018).
[2] Analisamos as estratégias de Guaidó aqui na Será? em “Venezuela: será o começo do fim de Maduro?” 01/02/2019 e “Venezuela:militares ofendidos rechaçam ajuda” 22/02/2019.
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