Tem razão o professor João Antônio de Paula, da Universidade Federal de Minas Gerais, ao dizer, em forte prefácio aos “Diários Intermitentes 1937-2002”, de Celso Furtado, que para este grande brasileiro “A lucidez foi uma companheira inseparável”. De fato, ao lermos essa recente obra póstuma, que nos chega editorialmente bem cuidada por Rosa Freire d’Aguiar, logo nos vemos diante de um inequívoco e orgânico apolíneo. Mais até: um clarividente.
Bem se vê que o pendor reflexivo e analítico foram conaturais a Celso Furtado desde a juventude. E não por acaso, com apenas 18 anos, estudando no Ginásio Pernambucano, sonha escrever uma “História da Civilização Brasileira”. Uma ambição de jovem que deixa antever, pela ponta do dedo idealista, o gigante em que se tornaria. Suas leituras, então, já são precoces e intensas: Schopenhauer, Platão, Machado de Assis, Gilberto Freyre (que poucos anos antes, em 1933, lançara “Casa-Grande & Senzala”), provavelmente Pascal, provavelmente muitos outros não citados: filósofos, sociólogos, historiadores…, como os “Diários” deixam entrever.
O apolíneo, malgrado as angústias próprias da juventude, busca seu planejamento existencial: possui um diário, diz ele, “[…] para tentar pensar sistematicamente — isto é, escrever”. O que nos lembra Hannah Arendt quando nos diz que ao escrever o que busca é realmente compreender: “Para mim, o importante é compreender. Para mim, escrever é uma questão de procurar essa compreensão […]”. Para o jovem Furtado, “A pena é um verdadeiro ‘alter ego’”. Mas, por enquanto, aos 24 anos, se lastima da sua “indisciplina mental” e da “consciência do tempo perdido” (!). Mais tarde, os anos de maturidade vão ser como que um avesso de tais percepções: a disciplina mental e o tempo dominado farão desabrochar o seu trabalho.
Datam daquela época de juventude os seus flertes com a literatura de ficção, de resto apenas platônicos flertes. O desejo de ser escritor ia de par com uma percepção cruel da vida e com o conhecimento da melhor literatura. No futuro, esse patrimônio interior seria transformado em lúcida luta por um mundo mais justo e solidário. O economista que viu a diversidade do mundo (bem antes do exílio, diga-se de passagem) não perderá seu pendor narrativo e criador. A cultura literária é uma espécie de estofo à escritura do humanista que vai muito além da economia. Esta, ao que parece, é só um núcleo do qual irradiam seus vastos interesses.
Quanto à política, o que transparece nos “Diários” é o que Nabuco já chamara de política com “p” maiúsculo. Daí o seu quase enfado em vestir uma camisa partidária, a deixar-se levar pelas paixões do momento. Se tudo para o poeta da modernidade, Baudelaire, “se transformava em alegoria”, para Furtado quase tudo é matéria social, mas de um social encarnado na vida concreta, que busca e tenta refugir às abstrações de gabinete — e nisso foi habilmente político. Mas o planejador que foi só se completava com o executor que servia. O apolíneo de fato evitava que sua luz iluminasse o vazio…
A maturidade, como se sabe, compensou as inquietações juvenis: como técnico de excelência, não tardou que ascendesse na administração federal e que por duas vezes fosse ministro, do Planejamento e da Cultura, pastas que foram muito menos setores e nomes burocráticos do que emblemas de sua própria vida. Mas sua grande luta, como assinala Rosa Freire d’Aguiar, foi a criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – Sudene. Nessa batalha, assinala Rosa, “Os adversários iam desde os incrédulos e desconfiados opositores de JK até os usineiros e as elites receosas da perda de privilégios e controle de verbas que irrigavam a política nordestina”. No livro “A fantasia desfeita”, bem como em outros momentos de sua vasta obra, ele abordaria com mais detalhes a luta pela criação da Sudene.
Finalmente, é de se registrar (embora sob o risco de redundância) que o nosso apolíneo parece ter unido em si mesmo o homem cosmopolita e o pensador brasileiro ou transbrasileiro. Os “ares do mundo” tão inspiradores quanto bem inspirados em diversos fóruns e universidades estrangeiras deram-lhe o gás que a sua juventude ambicionara. Com isso, pôde deixar um legado de brasileiro preocupado com a sua gente e com o sofrido destino da humanidade. Com estes “Diários”, até então inéditos, temos o privilégio de observar que o poder, malgrado o lodo que o acompanha, pode, se exercido com dignidade e conhecimento, ser a sementeira de um futuro melhor.
Brilhante resenha de um livro marcante. À altura do texto de Furtado e Rosa Freire d’Aguiar.
Obrigado, querido Clóvis. Honrado com sua leitura e seu comentário.
Abraço
Celso foi um jagunço civilizado que soube diplomar os franceses na Sorbonne.
Luiz Otavio: apreciei o “jagunço”. Sem entender, porém. Acho que vc se refere a uma frase de Assis Chateaubriand que, impressionado com o poder de convencimento de Celso, chamou-o uma vez de “Antonio Conselheiro de fraque”. Indeed! o fraque que ele tanto usou em Cambridge. cordial abraço.
Obrigado, Luiz Otávio.
Honrado por sua leitura.
Abraço
Excepcional análise! Eu, que já escrevi bastante sobre Celso Furtado, ainda aprendi com o texto, e agucei minha visão sobre meu ilustre conterrâneo!
Dr. Clemente,
Muitíssimo grato pelo generosíssimo comentário.
Forte abraço