Helga Hoffmann

Se fosse panfletário, quem sabe o filme que este ano é candidato do Brasil ao Oscar, do cearense Karim Aïnouz, poderia receber como subtítulo “família como aconchego e opressão”. Opressão que pode chegar a desumana. E ali no filme já aparecem formatos variados de família, família como amor e apoio mútuo. Quando foi exibido em Berlim, onde Aïnouz vive há uns 10 anos, virou “A saudade das irmãs Gusmão” (”Die Sehnsucht der Schwestern Gusmão”). Conta a história de duas irmãs, filhas de um imigrante português no Rio de Janeiro dos anos cinquenta do século passado. Irmãs amigas e cúmplices, que a vida e os preconceitos do pai padeiro separam, enquanto a saudade mantém as duas entrelaçadas. Alguém por certo achará excessiva a quantidade das cartas não entregues. Mas cartas – coisa antiga – são parte importante da estrutura narrativa desse filme.

“…um melodrama de grandes emoções, que jamais tem algo de ‘kitsch’ até o final de cortar o coração”, resumiu Carsten Baumgardt, da redação da revista de cinema alemã Filmstarts, ao fim de três páginas de uma crítica entusiasta.[1] Parte do que mostra esse filme não mudou de lá pra cá, nem pra pior nem pra melhor. Permanece maravilhosa a paisagem do Rio. Mas algo mudou, e a retórica mudou muito. De lá pra cá se descobriu a pílula, distribuída pela primeira vez no Brasil em 1962. E aconteceu a revolução sexual e a luta das mulheres por direitos iguais. Só que neste momento há a ameaça de perdas pela chegada ao poder de forças ultraconservadoras, como as que pedem o aparelhamento da ANCINE por evangélicos. E por acaso surge este ano este filme sutil com temática do patriarcado mais retrógrado.

O filme “A vida invisível” foi o escolhido pela Academia Brasileira de Cinema (ABC) para representar o Brasil no Oscar 2020, na categoria “Melhor Filme Internacional”. Na comissão da ABC encarregada da escolha, presidida por Anna Muylaert, ganhou do science fiction distópico Bacurau, de Kleber Mendonça Filho, que ficou em segundo lugar por apenas um voto, cinco a quatro. A disputa acirrada e o sofisticado nível técnico de ambos os filmes indica a vitalidade da atividade cinematográfica no Brasil.

“A vida invisível” estreou no Brasil em novembro, já carregado de prêmios. Foi o melhor filme na mostra paralela mais importante do Festival de Cannes, Um Certo Olhar (“Un Certain Regard”), cujo júri este ano foi presidido pela cineasta Nadine Labaki. Em Toronto, no “International Film Festival”, ganhou longos aplausos de uma plateia com nomes importantes do cinema mundial. Teve sessão de gala no “Zürich Film Festival”, aplaudido por plateia e crítica especializada. Karim Aïnouz deu muitas entrevistas nas viagens para divulgar o filme no mercado internacional e já relatou muitas vezes o que o impulsionou. O filme já tem os direitos vendidos para mais de 30 países, na Europa, Oriente Médio e Ásia, inclusive China. Aos Estados Unidos chegará antes do Natal. Por certo o produtor brasileiro Rodrigo Teixeira, da RT Features e o coprodutor alemão Michel Merkt, da The Match Factory, devem comemorar o sucesso comercial.

Ainda em dezembro, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos (“Academy of Motion Picture Arts and Sciences”) divulgará os dez semifinalistas da categoria, aos quais se chega por um complexo processo de votação em que participam os mais de 8 mil membros da Academia. Chegará “A vida invisível” aos cinco indicados que serão anunciados em janeiro? Em veículos importantes da cinematografia nos Estados Unidos apareceram indícios de que este ano uma indicação é possível. O Brasil nunca ganhou esse prêmio. Mereceria, na situação atual, não só pelo valor artístico do filme, mas também porque o Brasil está precisando de consolo e contraponto ao festival de besteiras que assola o país na área cultural do seu mundo, por assim dizer, oficial, comandado por Brasília.

A ideia do filme veio do primeiro romance de Martha Batalha, “A vida invisível de Eurídice Gusmão”. Martha Batalha, pernambucana do Recife, cresceu e estudou no Rio de Janeiro. A história desse seu primeiro romance já é uma aventura. Consta que foi rejeitado por várias editoras no Brasil, acabou aceito pela alemã Suhrkamp, e apareceu em 2016 publicado em alemão pela Suhrkamp/Insel como “Die viele Talente der Schwestern Gusmão” (Os muitos talentos das irmãs Gusmão) e em português brasileiro pela portuguesa Porto Editora, ligada a editores alemães. E então teve no mesmo ano uma edição da Companhia das Letras. Já tem edição em inglês e em chinês. Mas é agora, depois do sucesso do filme de Karim Aïnouz, que se tornou mais conhecido no Brasil e este ano está em 4ª reimpressão.

Confesso que estou entre esses que só leram o livro depois de ver o filme. O livro de Batalha é muito diferente do filme de Aïnouz. E não é só por causa da diferença de construção e ferramentas entre filmagem e texto literário. O livro é mais uma cronologia de acontecimentos baseada na vida das mulheres no entorno da autora. E é repleto de clichês na expressão de ideias feministas, mesmo com muita ironia: a voz da terceira pessoa utilizada na narrativa é quase de uma socióloga ou analista da sociedade comentando as reações e ações dos personagens, um mundo de mulheres de pretensões alcançadas ou destruídas por causa de homens.

Em sua entrevista à epd-film.de (22.11.2019) Aïnouz explicou: “O que me interessou mais [no livro] foi como essas duas irmãs foram separadas por um pai muito autoritário, e que consequências isso teve na vida delas. Colocamos o foco nisso.” Em entrevista ao crítico de cinema Luiz Carlos Merten (Estadão, 20.11.2019) dirigiu-se mais ao pessoal do ramo: “O livro me forneceu uma ferramenta, mas minhas referências foram Douglas Sirk e Rainer Werner Fassbinder. É verdade que incluí Uma Mulher Sob Influência, de John Cassavetes, na preparação das atrizes [Julia Stockler e Carol Duarte], mas o melodrama social de Sirk e a reinvenção da linguagem do melodrama por Fassbinder me impulsionaram. Imitação da Vida e O Medo Devora a Alma. Queria, conscientemente, fazer um melodrama de recorte feminista, mas sabia que tinha de evitar o panfleto. Cinema não é discurso. A verdade do cinema está nas personagens, e elas, as irmãs do filme, Eurídice e Guida, tinham de ser verdadeiras.”

Em outras entrevistas Aïnouz contou que quando recebeu o convite para dirigir o filme e leu o roteiro, em 2015 (antes mesmo que tivesse sido publicado o livro que o inspirou), sentiu que de algum modo eram vidas como a da mãe dele no Ceará, que tinha falecido recentemente, aos quase 90 anos, e que tinha criado o filho sozinha, com tia e avó, quando o pai do menino quis voltar para a Argélia. A saudade de quem partiu é tema em “A Vida Invisível”, e a imigração também, a imigração portuguesa no Rio de Janeiro, da qual pouco se fala. Aïnouz tem um documentário sobre a vida de refugiados em Berlim. (Entrevista a Marcela Paes, Estadão, 25.11.2019)

As atuações são perfeitas: mesmo porque não sou do ramo e não saberia de outra classificação. Magistrais todas, de tal modo que é quase injusto destacar Antonio Fonseca como o pai, ao expressar a tirania ambivalente, amor e ódio, de um ultraconservador tornado desumano por sua ideia de honra. Ou Fernanda Montenegro como Eurídice avó, no final surpreendente. O Rio de Janeiro é personagem também, belo, não o de Ipanema, mas o de São Cristóvão, do morro da Gávea, Santa Teresa, dos morros com favelas, da floresta densa ao pé do Corcovado, dos navios no porto. Sim, tem favela também, e não é como enfeite nem desgraça.

Seria injusto ignorar a trilha sonora, parte essencial até do enredo. Pois Eurídice sonhava em ser pianista, estudar no Conservatório de Viena, e na parte inicial do filme a vemos estudando piano, de maneira obsessiva. Toca Chopin (Estudo no. 9 em Fá Maior) e Grieg (Concerto para piano & Peças Líricas). O filme tem algo de samba canção e fado, e “Estranha forma de vida” de Amália Rodrigues entrou na trilha sonora. O responsável pela música do filme é um jovem compositor de trilhas alemão, Benedikt Schiefer, que recebera em 2011 o Prêmio da Crítica Cinematográfica da Alemanha por trilha sonora. Sua trilha para uma paisagem do trópico úmido e personagens com corpos e gestos cariocas é um feito de música para imagem.

Pois Aïnouz não queria apenas um melodrama, queria um melodrama tropical: “Eu queria um melodrama especificamente brasileiro e na medida do possível atual, relevante para o público de hoje. Isso tem a ver com os corpos, que aqui estão muito presentes. Melodramas clássicos com frequência são muito puritanos, e isto não se aplicaria a essas mulheres. Eu não mostro mulheres chorando. Trata-se de resistência no meu filme, as lágrimas deixo ao público. Pensei muito sobre o que distingue melodramas de diferentes culturas, por exemplo, um melodrama egípcio de um mexicano. Este é um melodrama decididamente brasileiro.” (Entrevista de 22.11.2019 a Thomas Abeltshauser, epd-film.de, acessado 05.12.2019, tradução minha.)

 

[1] Eu traduziria “kitsch”, nesta frase, como “meloso”: o filme de fato emociona sem ser sentimentaloide, escapa do sentimentalismo exagerado, fútil e barato. Eu acredito no cineasta que contou que correram lágrimas no Palais des Festivals em Cannes.