O fanatismo é um fenômeno que acompanha a humanidade desde a passagem do estado de natureza para o de sociedade. O homem, perdido em angustiantes perguntas sem respostas, sem saber por que e para que existe, vendo-se sozinho diante da morte que o ceifará no final, exasperadamente apega-se àquilo que seu imaginário pode fantasiar, para suportar tamanha angústia. As religiões atendem a essa demanda com razoável capacidade: claro, queimando e matando alguns incréus para, enfim, impor suas verdades deste e do outro mundo.
Todo o conhecimento produzido pela humanidade tem como força motriz a desesperada tentativa de preencher este vazio, que o universo, silente, insiste em nos deixar sem resposta.
Na política, o mecanismo segue uma lógica parecida, e, como este artigo tem o objetivo de discutir as causas do fanatismo político – ligeiramente diferente, embora herdeiro do religioso – será sobre este fenômeno que iremos discorrer.
ESTADO, PODER E SOCIEDADE
1. A pergunta de por que nas sociedades humanas há sempre uma classe que domina e outra que, dominada, obedece, é um dos pontos fulcrais da ciência política. O poder, esta coisa abstrata, se estabelece onde há agrupamentos humanos, e é por meio dele que são materializadas as formas de dominação de um sujeito sobre o outro, de um grupo sobre o outro.
2. O poder carrega traços atávicos da pré-história humana, e destes, a função paterna talvez seja o mais presente até hoje. Pai no sentido de quem nutre nossa existência, mas também aquele que tem o poder de acabar com ela – lembram de Abraão, que ia sacrificar seu filho Isaac a pedido de Deus?. Não me refiro aqui apenas ao pai biológico, mas também ao pai fantasmático, construído pelo nosso imaginário. O Sol, por exemplo, para sociedades primitivas representava esse tipo de pai – nutria, alimentando a vida, mas matava nas secas – , ou o mar, para primitivos da Polinésia, ou o vulcão, para aquelas tribos que viviam em suas cercanias. Deus, esse conceito abstrato que move parte importante da humanidade ao longo da sua história, é o herdeiro desses traços atávicos a que me referi. Mais tarde, com o Estado moderno, ele encontra um outro herdeiro, para dividir seu poder com ele.
3. O Estado moderno, que nos trouxe – ao longo de guerras e mais guerras – aos regimes democráticos atuais, é a suprema instância civilizatória, embora lute, com suas leis e suas instituições, contra as mesmas forças primitivas que insistem em nos desafiar, e se reproduzem, latentes, em cada ser humano que nasce, com suas pulsões, ascendendo à cultura, por meio da linguagem e do desejo.
4. O poder é esse amálgama que dá coesão às sociedades humanas, contendo nossa pulsão, garantindo-nos uma estabilidade possível para uma existência menos pobre e curta.
5. Todo o estamento político, esse “pajé moderno” que intermedia nossa relação com o Estado, opera, em nossa contemporaneidade, essa herança, encapsulada em nobres vestes, discursos e narrativas que nos fazem sentir representados por eles.
6. Entretanto, sem a política e o Estado, voltamos à barbárie, onde “a vida do ser humano é solitária, brutal e curta… uma constante guerra de todos contra todos “… (Hobbes)
O SUJEITO E A FUNÇÃO PATERNA
7. O sujeito, oprimido em suas limitações, projeta no líder qualidades que ele gostaria de ter, e sabe que não tem. Todas as suas frustrações, do campo profissional ao afetivo (família, cultura, pátria, etc..), são aliviadas, temporariamente, pois ardorosamente espera que seu líder – detentor imaginário de tais poderes – venha a resolvê-las. Qualquer falha, que provavelmente ocorrerá, deve ser deslocada para o outro, seu adversário, que também tem seu líder e sobre ele deposita as falsas e semelhantes esperanças. Tudo muito parecido com as sociedades primitivas, que sacrificavam virgens e animais nos altares, para conter a fúria dos ameaçadores fenômenos da natureza.
8. Sustentam-se mutuamente, numa teia imaginária tecida com ilusões, medo e ódio contra aquele que é seu oponente, e que pensa o mundo de forma diferente deles – que pode, inclusive, quer seja pela persuasão ou pela força, destruir a sua “confortável” relação imaginária estabelecida, muitas vezes, ao longo de toda sua vida, com seu líder. Alguns definem essa teia imaginária, que dá coesão a um grupo, de ideologia – mas isto é um vasto universo da filosofia, da sociologia e da ciência política, para entrarmos nele agora.
9. Mas por que não podemos abrir mão desses mecanismos artificiais – o conhecimento, a política e as religiões – para dar conta da nossa existência? Porque seria necessária uma estrutura psíquica fortalecida com uma visão de mundo extremamente sólida de conhecimentos e aprendizados, para o sujeito suportar, sozinho, a angústia e a dor de existir – um inexistente ser humano completo.
10. Nosso mecanismo afetivo, constituído pelas relações parentais – pai, mãe e filho – deixa um vazio estrutural, no momento em que se rompe a relação fusional que a criança, totalmente dependente, tem com a corpo da mãe. É a ruptura dessa relação fusional, operada pela interdição paterna, que nos funda com sujeito. É este vazio, o qual carregamos durante nossa existência, que nos permite desejar, sofrer, amar e criar. Alguns conseguem realizar feitos perenes, deixados como legado para a humanidade, enriquecendo nosso processo civilizatório.
OS MECANISMOS PSÍQUICOS QUE REGEM O FANATISMO
11. O fanatismo político, manipulado pelas diversas vertentes ideológicas da classe política, captura o sujeito nessa brecha afetiva que o constitui, e sobre a qual ele é absolutamente alienado, naquilo que de mais valioso constitui sua existência: o desejo.
12. Ser capturado por uma ideologia – com a certeza cega dos fanáticos – dá sentido a uma existência medíocre, finita e sem rumo, conseguindo preencher, enfim, este vazio estrutural com sentimentos de êxtase, euforia e completude. Entretanto, como tudo é muito frágil, pois fruto de sua relação imaginária com a realidade, este complexo mecanismo de defesa existencial dá início a uma narrativa persecutória, onde, de forma delirante, vai se distanciando cada vez mais, e sem perceber, da realidade, vendo o outro como seu oponente e inimigo, fonte de todas as causas que ameaçam seu sistema ideológico “perfeito”.
13. É preciso alimentar com medo, ódio e preconceito essa fornalha da ignorância e da iniquidade humana, que é o fanatismo.
14. O fanatismo político tem horror à crítica, pois esta tem o poder de destruir seu castelo de cartas imaginário, arremessando-o de volta à angústia de uma existência sem sentido e limitada.
15. Como um selvagem primitivo, o fanático sacrifica em seus altares modernos a razão, principal recurso, construído ao longo de milênios, que nos permite, com tolerância, aceitar nossas limitações e as dos outros, e, sem ódio, preconceito ou medo, exercermos nossa humanidade, entendendo que é da diversidade humana que nos fortalecemos, como sociedade e como sujeito.
DEMOCRACIA…
16. Após longo e sangrento percurso de guerras após guerras, a humanidade chega ao Século XX com duas guerras mundiais com milhões de mortos, a última com tecnologia atômica capaz de extinguir a vida na terra. Algum importante aprendizado aconteceu, forçando a criação de instituições e acordos internacionais que regulassem tamanha irracionalidade. A democracia é a suprema instância lógica possível, capaz de, razoavelmente, conter as primitivas pulsões humanas.
17. Ela tem como base a liberdade do indivíduo em sua relação com o Estado e com o outro; tem como prática a tolerância para com a diversidade humana, e autorregula-se com o exercício de importantes instâncias estruturantes: como a crítica, as eleições que, periodicamente, substituem aqueles que estão no poder, e o sistemático aperfeiçoamento das leis, acompanhando o fluxo evolutivo dos costumes e desejos humanos.
18. A democracia não é um fim em si mesma, ao contrário, é um processo interminável em busca de um aperfeiçoamento contínuo, com avanços, retrocessos e novos avanços – tentando acompanhar o fluxo dos novos tempos, dando-lhe um sentido civilizatório, apesar das forças atávicas primitivas que continuam latentes, a insistir em seu retorno pulsional – a cada agressão de um homem contra o outro, a cada crime, a cada guerra.
19. É, enfim, um sistema de governo que tem suas premissas em nossas imperfeições humanas, eternas e insolúveis, porém sobre estas atua de forma incessante, acolhendo e fortalecendo a diversidade humana, com suas imperfeições e conflitos estruturais, viabilizando um ambiente para convivermos com nossas incertezas e, por meio de um ceticismo ilustrado, sem guerras, construirmos nossas relações sociais.
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João
Gostei muito do seu artigo, embora confesse um certo incômodo com a uso dos conceitos freudianos para interpretação da sociedade. Mesmo assim, sua análise é bem interessante. Entretanto, não percebi qual a receita para a cura do fanatismo político. Este ameaça a democracia e o que me parece é que você propõe democracia para derrotar o seu inimigo, no que parece meio redundante. Se a causa deste fanatismo é o vazio das relações parentais, a receita para a cura seria uma psicanálise coletiva? Na verdade, você levantou uma questão de enorme relevância no Brasil atual – acabar com o fanatismo – mas fiquei sem uma resposta. Acho que você deveria escrever outro artigo focando na cura. Abraços, Sérgio
Talvez a sua incisiva pergunta seja daquelas que não têm resposta, Sérgio.
A rigor não deveria comentar, pois desconfio que pouco entendi do texto. Apesar de ter alguns anos de psicanálise nas costas. Eu daria mais ênfase ao sonho de liberdade para combater o dogma. Também acho que é o caso de estudar fases históricas como se fossem a maré, tem a maré alta e a preamar: quando o dogma e o fanatismo se espalha, percebe-se de repente o valor da liberdade, e o movimento geral da sociedade de novo munda de rumo. A minha esperança é que o sonho de liberdade acabe sendo mais forte que o medo de um futuro desconhecido que leva o indivíduo a abrigar-se em grupos definidos e crenças persistentes. Mas, de novo, mais frases obscuras sem comprovação empírica. No fundo ainda é, com roupagem diferente, o velho embate entre ciência e religião.
Antes que o vosso homem do mar me corrija: ali onde eu escrevi preamar deve ser “vazante”.
Pessoal,
Obrigado por comentar. Pretendo escrever um outro artigo com o objetivo de desdobrar um pouco alguns conceitos contidos aqui. Sei que fui ambicioso em jogar em poucas páginas conceitos que filósofos e cientistas políticos vêm há séculos debatendo; além das abordagens fundamentais da psicanálise sobre a Função Paterna na constituição do sujeito. Sérgio me pede uma receita, quando na verdade escrevi este artigo, usando propositalmente um título provocador, quase como uma isca para os leitores das redes sociais, onde navegam os fanáticos. Talvez a receita seja : conhecimento onde há ignorância e o uso da razão onde grassa a irracionalidade das paixões. O texto tem este propósito, ser, embora uma gota nesse mar de informação, parte da “cura” . Aspeio a cura pois isso não existe para a psicanálise. O sofrimento psíquico é preço que pagamos para viver em sociedade, não uma doença…mas aí já vou entrando em outra seara. Esperarei o segundo artigo.
Abraços e obrigado pela leitura.
P.S Para aqueles que não trafegam nas redes sociais, informo que, em dois dias, já há uma dezenas de comentários e vários compartilhamentos. Todos positivos e alinhados com o propósito do texto.
Muito bom, João.
Nunca é demais exaltar a democracia numa hora em que muitos não se dão conta do seu valor. Temos tudo para ser o povo da liberdade, da tolerância e da diversidade. É talvez preciso ensinar as massas a desconfiar sem perder a crença.