Olavo de Carvalho.

 

Não sei precisar a data, mas deve ter sido em março de 1997, quando voltei ao Brasil depois de um ano de estudos no exterior. Estava solto na buraqueira do Recife Antigo, uma noite de sábado, quando encontrei um antigo colega da Fundação Joaquim Nabuco, à época trabalhando na organização dos famosos Seminários de Tropicologia, criados e mantidos anos a fio por Gilberto Freyre. Conversa vai, conversa vem, ele me convidou para ser o debatedor ad hoc do próximo Seminário, que iria receber um sujeito chamado Olavo de Carvalho, autor de um livro recente que andava causando furor: O Imbecil Coletivo. Nunca tinha ouvido falar do autor, e muito menos do livro, mas, lisonjeado (“Tudo é vaidade” – já advertia o Eclesiastes), aceitei. 

Fui ler o livro e tomei um susto. Parecia que tinha ganho um presente de grego. O sujeito era uma metralhadora-giratória disparando chumbo grosso em tudo que recendesse a mais leve fragrância de esquerda. E eu, mesmo tendo sempre sido um “marxista civilizado” (como me qualifica meu velho e querido amigo, professor Cláudio Souto), temi ter entrado numa fria. Será que tinham me chamado porque outros haviam declinado da honra? Quando recebi o texto da conferência, fiquei mais aliviado. Era um texto sobre o pensamento brasileiro e dava para me safar sem nenhuma costela quebrada. Chegava mesmo a concordar com várias coisas que ele dizia. Uma passagem, porém, me eriçou os pelos. Insurgindo-se contra o que chamava de “nosso populismo antropo-sociológico” que considera reacionária qualquer distinção entre cultura popular e cultura erudita, Olavo estabelecia um paralelismo que achei estapafúrdio, contrapondo, de um lado, “a música de Pixinguinha e a de Villa-lobos”; de outro, “a literatura de Danusa Leão e a de Machado de Assis”. Fiz dessa passagem meu “eureca” e preparei um contra-argumento que achei, e ainda acho, pertinente. Citando de memória, ei-lo.

De um lado, é verdade, há óbvias diferenças entre a música erudita de Villa-Lobos e a música popular de Pixinguinha, ainda que valha a pena lembrar que não existe um fosso entre ambos. Villa-Lobos, um bon vivant amante de serestas e da boemia, aproximou-se várias vezes de uma música menos exigente, de que alguns dos seus choros são bons exemplos – como é o caso, para citar apenas um, do choro Peça para Violão, composta à maneira de um “tango” de Ernesto Nazareth, a quem é sintomaticamente dedicada. De seu lado, Pixinguinha, talvez despretensiosamente, chegou a compor peças dotadas de uma sofisticação melódica e harmônica que iam além do meramente popular, de que a elaborada Lamento (sobretudo na vestimenta definitiva que lhe deu Jacob do Bandolim) é um bom exemplo. Noutros termos, Villa-Lobos e Pixinguinha foram cultores de uma mesma arte: a música. Ora, esse não era o caso de Danusa Leão e Machado de Assis. A comparação chegava a ser injusta com … Danusa! Autora (na época) de notas sociais em jornais e de um best-seller chamado Na Sala com Danusa, onde ensinava boas maneiras a novos ricos, a grande musa dos anos 50 e 60, mesmo tendo sido a mulher fascinante que foi, nunca pretendeu fazer nada parecido com Memórias Póstumas de Brás Cubas. Machado fazia literatura; Danuza, crônica social. Munido desse argumento, fui enfrentar a fera.

Mas o debate foi ameno. Afinal, estava-se num espaço acadêmico e Olavo, apesar da agressividade do livro que havia lido, soube (ou teve de) se comportar de acordo com o ambiente. Chegou até, imaginem, a concordar educadamente com o meu argumento. Saí do debate sentindo-me um pequeno César: veni, vidi, vici. Pouco tempo depois, deparei-me com um novo livro seu na praça, O futuro do pensamento brasileiro, onde o texto da conferência foi publicado. Acho que na livraria mesmo fui direto no trecho incriminado, para conferir. Teria o autor modificado o texto? Qual nada! Estava igualzinho ao que eu havia criticado. Sua concordância tinha sido apenas por cortesia. Confesso que fiquei desapontado. 

A historinha que contei aconteceu há quase um quarto de século. De lá para cá, Olavo de Carvalho rebaixou o debate de idéias a um nível tal de escatologia que no dia da sua morte prefiro não adjetivá-lo. Afinal, estou farto do ódio insano que há anos rasga o país, pelo qual ele foi um dos mais eminentes responsáveis. Citando Aldir Blanc, prefiro dizer que na morte a gente esquece – melhor: a gente anistia! De resto, Jair Messias Bolsonaro, ao decretar luto oficial do seu governo pelo seu falecimento, prestou a homenagem mais apropriada que ele merece. Desta vez, não fiquei desapontado.