Helga Hoffmann

De novo há imensas multidões apelando para entrar na Europa. Mas as imagens agora só mostram a tentativa da partida, sem chegada. Apenas chegou a Lesbos no fim de fevereiro mais um barquinho de borracha inflado, um grupo que parecia uma família, com crianças, escapando da água gelada nessa época, chegando da Turquia, mas eram do Afeganistão. A guarda costeira da Grécia autorizou que desembarcassem. Outro barco assim frágil naufragou no Mediterrâneo, esse cemitério de refugiados e imigrantes ilegais. Por terra só entrou alguém que conseguiu passar pelo arame farpado ou pela barreira de gás, escudos, cacetes e capacetes de FRONTEX, a agência da União Europeia de guarda das fronteiras e costas, que apoia as guardas-fronteiras nacionais.[1] Alguns poucos podem ter conseguido, pois menos de 1/5 dessa fronteira turco-grega de uns 80 km tem arame farpado. A fronteira da Bulgária já é praticamente toda de arame farpado. E janeiro e fevereiro são meses de inverno, com neve, em que a temperatura nessa região pode chegar a 0 e menos.

Por ora as multidões aglomeradas no lado turco da fronteira greco-turca não cabem na definição de refugiados para entrar na Europa, pois até agora não corriam perigo de vida e perseguição direta na Turquia. São majoritariamente sírios, alguns afegãos e líbios. Foram iludidos por uma mentira do Presidente da Turquia, de que ele “abrira a fronteira”. Dezenas de pessoas que lutavam no fim de fevereiro por entrar nos ônibus abarrotados em Istambul, rumo à fronteira da Grécia e da Bulgária, acreditaram que as “fronteiras estavam abertas”.

Será que ainda não haviam percebido o quanto o clima político e o tabuleiro geopolítico mudou desde 2015? Será que sonham que pode acontecer algo semelhante ao 4 de setembro de 2015, quando a chanceler da Alemanha Angela Merkel recebeu um chamado do então chanceler austríaco Werner Fayman, alarmado com milhares de refugiados amontoados na Hungria e que abordavam os trens rumo a Viena? Merkel paga até hoje o preço político de sua decisão humanitária. Foi acusada de estimular a imigração ilegal, já que Hungria e Áustria estavam na categoria de países seguros: sírios e outros refugiados então não corriam ali perigo imediato.

Já estão esmaecidas faz tempo as imagens comoventes dos trens superlotados chegando a Munique e os refugiados da Síria, e outros mais, sendo recebidos com cobertores e chocolate quente.  Até cartazes com “Willkommen”. Hoje são raros os defensores de uma política de fronteiras generosa na Europa. Vem crescendo o número e a força dos que manipulam em seu favor o medo de imigrantes, como Orban na Hungria ou Kurz na Áustria. E houve Brexit com uma linha anti-imigração. O Ministro do Interior da Alemanha, Mathias Middelberg, do partido CDU, considerou o ato de Erdogan “quebra de contrato humanamente irresponsável” – um indicador de quanto mudou o sentimento na Alemanha depois de 2015.

No momento atual os refugiados estão sendo aproveitados como massa de manobra nas jogadas em que Erdogan e seu partido AKP buscam aumentar o poder regional da Turquia, em uma dança de atritos e reconciliações com a Rússia. A última das jogadas é deixar os refugiados se amontoarem perto da fronteira ocidental da Turquia. A alegação é que a Turquia não tem condições de receber mais imigrantes. De fato, 3,6 milhões de sírios vivem em território turco e, no momento, mais um milhão de civis se aglomeram na Síria perto da fronteira com a Turquia, que está fechada. Mais uma vez Erdogan pede da Europa distribuição mais equitativa da carga de refugiados. Os fundos prometidos no acordo negociado por Merkel em 2016 se tornaram insuficientes, o financiamento das escolas para as crianças sírias está se esgotando, e a ajuda em dinheiro dada a uma parte dos sírios que vivem na Turquia ficou apertada com a chegada de novos imigrantes.

Um novo afluxo de milhares de imigrantes vindos da última zona de combate na Síria seria carga excessiva. A província síria de Idlib é o último reduto de oposicionistas e combatentes vários, inclusive do EI, ainda não retomado pelo regime de Bashar al-Assad. Estava prestes a cair, quando Erdogan enviou militares turcos para combater tropas de al-Assad no início de fevereiro. Os combates em Idlib atingiram civis e deslocaram centenas de famílias, que estão em condições inimagináveis, perigosamente perto da área de combate, sem abrigo na neve, em tendas precárias.

Erdogan ameaçou antes abrir as fronteiras para a Europa, mais de uma vez, para pressionar a União Europeia a apoia-lo em diferentes iniciativas políticas, como o aumento da sua plataforma marítima ou a intervenção na Líbia, ou reagindo a críticas dos europeus às violações de direitos humanos e da liberdade de expressão que mantêm muitas dezenas de presos políticos na Turquia. Depois da crise de refugiados de 2015, a União Europeia e a Turquia assinaram um acordo pelo qual a Turquia se comprometia a impedir a imigração ilegal, evitando sobretudo que traficantes levassem passageiros em embarcações frágeis e perigosas, como as que estavam chegando às costas da Grécia, da Itália, da Espanha, ou recolhidas em alto mar por navios de socorro que já não existem. Para isso o governo turco recebe ajuda financeira da União Europeia para manter os refugiados sírios em seu território, o que em tese facilitaria o seu repatriamento quando a guerra acabasse. Esse acordo, além das barreiras de arame farpado, havia reduzido os fluxos de refugiados para a Europa. Em 2019, contudo, começaram de novo a aumentar.

Agora, concretamente, a Turquia pediu uma reunião extraordinária da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), invocando o artigo 4 por julgar sua segurança ameaçada. O pedido foi feito depois que mais de 33 soldados turcos morreram em um bombardeio na província de Idlib, o último pedaço da Síria que ainda não está sob o controle de fato de Bashar al-Assad. A Turquia atribuiu a Damasco o ataque a suas tropas que haviam sido enviadas algumas semanas antes para ajudar os grupos anti-Assad, mas há controvérsia, pois aviões militares russos estavam naquele espaço em apoio a tropas de al-Assad. No contra-ataque militar turco teriam ocorrido perdas militares sírias, de soldados e helicópteros, não confirmadas pelo governo sírio. A declaração oficial de Moscou, na ONU, é que a Rússia não participou desses ataques. Mas no mesmo dia mandou duas fragatas com mísseis para o Mediterrâneo, que passaram pelo Bósforo, o coração de Istambul, dia 28 de fevereiro. Por ora a OTAN não considerou válido invocar o artigo 4, pois os soldados turcos que morreram estavam em território sírio.

Erdogan quer que a Rússia se afaste dos combates em Idlib, e quer apoio para uma zona-tampão na Síria, sob administração turca, uma faixa extensa de território junto à fronteira turca, tanto para conter ali a população que ameaça transbordar agora para a Turquia, como para o projeto fantasioso de repatriar para essa zona pelo menos dois milhões dos sírios que agora vivem na Turquia. Ao mesmo tempo o interesse maior de Putin é que acabe a guerra, que Bashar al-Assad controle a Síria inteira, e que a Rússia possa finalmente encerrar seu envolvimento militar na Síria que já dura cinco anos, custa caro, e está perdendo apoio político da população russa. Deve lembrar que o argumento inicial transmitido aos pilotos dos bombardeiros russos na Síria a partir de 2015 havia sido o combate aos terroristas do Estado Islâmico. Agora até os Estados Unidos, ao se afastarem do teatro da guerra, implicitamente afirmam que o EI deve estar vencido. E, no entanto, Erdogan pede agora que os russos permitam que a tropa turca, a segunda maior dentre os membros da OTAN, faça retroceder as forças do regime de Bashar al-Assad às vésperas de sua reconquista total do território sírio. Seu argumento é o da criação da zona-tampão na fronteira.

A OTAN reunida em 28 de fevereiro declarou seu apoio à Turquia e que vai observar o desenrolar dos acontecimentos. Mas não haverá envolvimento de forças europeias na Síria. Muito menos para um confronto com a Rússia. Erdogan terá que buscar algum entendimento com Putin, com quem se encontraria este 5 de março. Desde que a Rússia passou a dar apoio militar ao regime de Bashar al-Assad, depois de 2015, Erdogan havia se voltado para os russos, apesar dos interesses conflitantes. Comprometeu-se inclusive com a compra de um sistema de defesa antimísseis dos russos, provocando novos atritos com os Estados Unidos e demais membros da OTAN. Mas tal sistema ainda não está instalado.

Após o fracasso das negociações de paz em Genebra em que ainda havia a presença dos Estados Unidos, durante algum tempo em 2017 e 2018 Erdogan juntou-se à Rússia e ao Irã na tentativa de intermediar entre diferentes grupos de governistas e oposicionistas. Sem resultado. De fato, com o apoio militar russo, o regime de al-Assad foi retomando o território. Erdogan, com sua ideia de zona tampão, agora quer um recuo dos que estão vencendo nesta guerra de nove anos.

A batalha final por Idlib aterroriza os civis deslocados. A ONU teme que poderá ser a pior crise humanitária de toda a guerra na Síria. Pelo menos na queda de Aleppo os civis estavam sendo levados para outros lugares. Agora não há para onde fugir, a fronteira turca está fechada, e os combates por Idlib estão chegando perigosamente perto de um acampamento da UNHCR, a agência de refugiados da ONU. O príncipe jordaniano Zeid Ra’ad al-Hussein, antecessor de Michelle Bachelet no cargo de Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos, resumiu depois do esvaziamento de Aleppo, em dezembro de 2016, a tragédia que deixara meio milhão de mortos em seis anos de guerra: “Isso que vemos em Aleppo pode se repetir em Douma, em Raqqa, em Idlib.”[2] Passados dois anos, estamos em Idlib, em março de 2020. Mas, agora, para onde evacuar a população civil?

[1] FRONTEX (acrônimo para “fronteiras exteriores”) existe desde 2004, criada com o nome de “Agência Europeia para a cooperação operacional na fronteira externa dos membros da União Europeia”. Tem sede em Varsóvia e suas tarefas e recursos se expandiram gradualmente, sobretudo a partir da crise de refugiados de 2015, incluindo inteligência, treinamento, operação em aeroportos. frontex.europa.eu

 

[2] “E existiu uma vez uma cidade chamada Aleppo…”, revistasera.info, 23 de dezembro de 2016.