Marco Aurélio Nogueira

Caos e destruição by Robin Chyo.

Segundo informações que circulam na mídia, Fernando Henrique Cardoso acha que “é melhor evitar” o impeachment de Jair Bolsonaro. Já a Lula diz que ele deve partir dos “setores organizados” da sociedade.

Partem de posições aparentemente discrepantes, mas chegam ao mesmo lugar. FHC prega uma cautela sábia mas que pouco se justifica no momento. E Lula sabe que os “setores organizados” não são tão organizados assim, têm pouquíssima voz e não se organizarão no curto prazo.

Enquanto os ex-presidentes mexem seus pauzinhos e dão asas à imaginação, o País continua à deriva, sem ser governado. Bolsonaro rasga diariamente, aos olhos de todos, a Constituição, a decência e a responsabilidade, expondo o Estado brasileiro a um terremoto de vastas proporções, que já está soterrando milhões de brasileiros.

Seria o caso de perguntar onde estão os democratas, os liberais, os socialdemocratas e os de esquerda, se quisermos insistir nessa distinção. A falta de iniciativa deles fere e veta o futuro. Não é que não estejam a falar, a escrever e a pregar. O problema é que não estão a agir, batem à porta sem vontade de ingressar no campo das soluções. A crise é grave demais, mas eles permanecem fazendo cálculos eleitorais e pisando em ovos, sem atentar para a desgraça que já despontou e que, a partir de agora, se nada for feito, só tenderá a aumentar.

Porque a crise é mais do que uma crise de governo e uma crise sanitária. Passa por elas, mas desemboca numa crise de tipo estrutural, que problematiza a reprodução do capitalismo e de seus projetos, como o moribundo neoliberalismo. Enquanto essa crise se estende no tempo, faltam políticas públicas de qualidade democrática e social, capazes de proteger os cidadãos, os mais pobres e excluídos sobretudo. No Brasil em particular, o governo está entregue a pessoas como Weintraub, que dizima a educação, e Ernesto Araújo, que expõe o País a uma condição internacional ridícula e subalterna. A Saúde Pública vive do sacrifício de seus profissionais, que se deparam com carências e insuficiências de todo tipo, que põem em xeque o SUS. A economia está abandonada à própria sorte, o que leva por um lado à afirmação unilateral do mercado e, por outro, à opressão sobre as pequenas e médias empresas, com seus trabalhadores.

O fato, duro de ser assimilado, é que os democratas brasileiros foram engolfados por um nó tático. Sabe-se do que se trata: um esquema de jogo (uma tática) que imobiliza o adversário a ponto de não deixá-lo respirar. Vale para o futebol e vale para a política. Na situação atual, é como se os adversários de Bolsonaro tivessem perdido a coragem e estivessem sem rumo, sem saber o que fazer, por onde caminhar. O reacionarismo se afirma, por sobre os despojos da democratização.

Os partidos políticos não existem como seres ativos. Todos eles. Seus integrantes decidiram “ficar em casa”, ou seja, nos espaços virtuais do Congresso, onde imperam a cautela extremada, a cegueira programática, a conveniência. Não mobilizam ninguém, nada propõem, limitam-se, no melhor dos casos, a bater na “situação”. Sobra retórica, escasseia o sentido de urgência. Apostam na judicialização da política, torcendo para que o STF faça o que eles deveriam fazer, para que a PGR denuncie o presidente pelos crimes sequenciais que vem cometendo. Os coletivos da sociedade civil estão paralisados pela quarentena e pela carência de ideias.

Que Forças Armadas são as brasileiras, que assistem impávidas a que generais de quatro estrelas compareçam à Justiça como testemunhas e mentem com a maior cara dura, escudando-se na manjadíssima escapatória do “não me lembro” e na reinterpretação maliciosa de frases e intenções? Apresentam-se como moderadores dos excessos presidenciais, mas na verdade estão a se revelar verdadeiros aduladores irresponsáveis. Pouco adianta baterem no peito em nome da “Pátria”, recordarem glórias da corporação que integram, lustrarem suas medalhas e seus galardões. O papel que estão a representar na política prática desmente tudo isso.

A tal ponto chegamos que a sensação é de que está tudo dominado. A esculhambação se generalizou, já não há quem se disponha, no Planalto, a carregar o facho da razão.

O vice-presidente Hamilton Mourão, ele também um general tarimbado, escreveu no Estadão de 14 de maio um artigo em que reconhece a gravidade da crise mas a atribui a vetores que inocentam o centro decisório. O incêndio se alastra, segundo ele, porque a polarização é excessiva, a imprensa radicaliza e toma partido, a federação não funciona. Pensa que a crise não é insuperável “desde que haja um mínimo de sensibilidade das mais altas autoridades do País”. E nada mais disse, nem lhe foi perguntado.

Além das ponderações cautelares e cautelosas dos democratas mais coerentes, sobram os ministros do STF. Mas eles também têm seus limites, suas idiossincrasias, seus perrengues internos, suas disputas. Judicializar a política pode até habitar o íntimo de cada um deles, mas não é de se acreditar que atravessarão o Rubicão. Se o fizeram, posto que nada pode ser sumariamente descartado, será uma boa solução? Agirão apoiados na Constituição, ou na interpretação que fizeram dela, mas não necessariamente produzirão democracia. Essa, salvo melhor juízo, passa pelos políticos.

O nó tático desorganizou o que estava precariamente organizado. Em vez de se unirem, os democratas se dividem ainda mais. Acuados, mastigam as culpas pelos erros que cometeram, quiçá envergonhados. Não agridem, não chutam a gol. Nem sequer demonstram acreditar que a defesa é o melhor ataque.

É preciso romper esse cerco.