Paulo Gustavo

No último 23 de julho, o filósofo pernambucano Evaldo Coutinho teria completado 107 anos. Teria, porque infelizmente nos deixou há exatos onze anos. Conheci-o pessoalmente já octogenário, na década de 1990. Inicialmente, só de vista, nas salas de aula do Centro de Artes e Comunicação da UFPE, onde ensinava nos cursos de Letras e Arquitetura. Já então carregava em si dois inimigos íntimos: um glaucoma e o mal de Parkinson. Sua estatura baixa e sua voz gentil, suave, contribuíam para lhe conferir um aspecto frágil e torná-lo, sem mais, uma figura veneranda. Quanto contraste com a altura e a densidade proustiana de sua obra! Quanto contraste com o teórico que deslocou do maciço para o vão o foco da arquitetura! Que jovem de então, ao vê-lo, poderia descobrir nos olhos baços a visão privilegiada de quem profundamente refletiu sobre a ontologia da própria visão?

Minha primeira leitura de “A Ordem Fisionômica”, seu “opus magnum” em sete volumes, foi amor à primeira vista. Desde então o que me impressiona na obra de Evaldo Coutinho é menos a sua intuição fundamental e solipsista do que os desdobramentos dela decorrentes, ou seja, o tecido que é a própria escritura. Desdobramentos que se concatenam, se repetem e se multiplicam como imbricações necessárias de um sistema que, de qualquer ponto que se o aborde, sempre está remetendo para a sua organicidade, a exemplo de um hipertexto cuja leitura, sendo, por natureza, não linear, fosse um jogo de espelhos e cristais que se refletem iluminados por um mesmo jorro de luz que os atravessa.

Escrevi, à época, três artigos sobre “A Ordem Fisionômica” para o “Diario de Pernambuco. Coutinho, por ser um homem gentil por natureza, logo me procurou para agradecer. Nos encontramos várias vezes, surgindo daí uma amizade atada pelos fios de nossas afinidades. Confesso, não sem alguma vaidade, que ele, mestre de gerações, me confidenciou que fui um dos que mais perto chegaram de compreender a sua obra. Uma gentileza, por certo. Mas, gentileza ou não, o fato é que nós, leitores, em especial leitores de filosofia, não nos encontramos todo dia com um autor que admiramos. Escusado dizer que eu possuía então a ousadia ou a imprudência da juventude…

“A Ordem Fisionômica”, brava e integralmente publicada pela editora Perspectiva, de São Paulo, é monumento que está a merecer análise e memória. Coutinho bem que merece uma fortuna crítica que vá além do pouco que já lhe foi tributado. Esse esquecimento dos estudiosos, o filósofo, tão tímido quanto discreto, atribuía, numa de suas raras entrevistas, ao escasso interesse de nosso povo por qualquer questão metafísica.

Os títulos que compõem “A Ordem Fisionômica” não deixam dúvida quanto à sua reflexão ontológica a partir de um solipsismo de inclusão, o que declara que a consciência não pode ser transferida a outrem e que, portanto, só o próprio filósofo é o único ser existente e existenciador. Assim, “O lugar de todos os lugares”; “A visão existenciadora”; “A testemunha participante”; “O convívio alegórico”; “Ser e estar emnós”; “A subordinação ao nosso existir; “A artisticidade do ser” são livros que se articulam uns aos outros, sempre voltados ao núcleo irradiador do ser, que, tal como para Parmênides, é um só e único ser; e no caso de nosso amigo, enfatize-se, se autorrepresentando de uma forma estética e criadora.

Para Coutinho, o filósofo é como um demiurgo ao qual refogem condições de fundamentar sua própria metafísica. Razão lhe assiste a sempre insistir no caráter triste, elegíaco, imanente e fugaz do ser, uma vez que está fadado à morte, ao eterno perecimento. Tudo o que o filósofo pode dar a ver é apenas a própria “ordem fisionômica”, na qual todo o mundo e tudo o que existe é uma contínua criação do único ser.

Para Evaldo Coutinho, o ser é algo assombroso, como já queriam os antigos gregos. Ele o aponta como uma espécie de frágil irrupção no nada, cuja noite eterna voltará a tragá-lo para sempre. O existir é um prazo, o prazo de sua vida. Com ele desaparecerá o mundo num “naufrágio em que submergem o barco e as próprias águas”. Nada pode dizer o ser, a não ser ele próprio.

Fadado à morte, o ser se sabe precário, luz que tremula diante do nada que voltará a calá-lo e extingui-lo. A existência de que se sabe portador aguça-lhe a consciência da morte, da futura inexistência. Comparada ao prazo de sua vida, a inexistência é um infinito nada. Ninguém testemunhará: há, como diz o filósofo, um pontointestemunhável, há um não amanhã.

A filosofia evaldiana é também uma espécie de contemplação ativa, além de ser um híbrido de ontologia, estética e literatura. Nela há uma obsessão visual, curioso ponto de interface com a ótica contemporânea, por sua vez dinamizada pela fotografia, pelo cinema, pela internet, etc. Assim como a obra de Proust se nutre da fotografia, a de Coutinho se nutre da mágica do cinema e da objetiva (não por acaso ele também escreveu crítica de cinema e um livro, “A imagem autônoma”, onde expõe suas ideias sobre a sétima arte). Dir-se-ia que sua obra só poderia surgir no século 20, alimentada pela fixação na exuberância visual que nos mergulha num já vertiginoso turbilhão de imagens. Assim, podemos dizer que sua filosofia nos ensina a ver, operando como uma hermenêutica para o que ele chamou de “idioma óptico”. Quem quer que se detenha na sua leitura jamais verá o mundo como antes. Sua filosofia é uma ferramenta de prospecção e de conhecimento. A sua ênfase no ato de ver refoge à banalidade com que nos habituamos a usar a nossa própria óptica individual. Enfim, malgrado (ou por isso mesmo!) seu parentesco com o Barroco, como o próprio filósofo achava que possuía, Evaldo Coutinho é, antes de ser um “desenganado” pelo teatro do mundo, um inarredável espelho do contemporâneo.

Paulo Gustavo

https://pt.wikipedia.org/wiki/Evaldo_Coutinho