Luiz Sérgio Henriques

Na sua primeira viagem aos Estados Unidos, um grande país pelo qual, de modo bizarro, demonstra afeto e reconhecimento próprio dos imaturos, o presidente Bolsonaro fez uma declaração que não prenunciava nada de bom. Num jantar em Washington, rodeado de conservadores ou, mais apropriadamente, ultraconservadores, Bolsonaro delineou uma linha de ação carregada dos piores propósitos: “Eu sempre sonhei em libertar o Brasil da ideologia nefasta da esquerda. O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer”.

Para quem, como nós, viu com reticências a pretensão anterior da esquerda petista de voltar ao marco zero e recomeçar a história do País depois de 500 anos de erros supostamente contínuos, as palavras de Bolsonaro soaram ainda mais ameaçadoras, como uma espécie de retradução extremada, ainda por cima em chave anti-intelectual, de um programa perigoso e pouco convincente. Com ironia involuntária, pois de ironia o personagem em pauta não é minimamente capaz, o então recém-empossado mandatário colocava em primeiro plano a tarefa de desconstrução, uma palavra sofisticada do receituário pós-estruturalista, que, vinda agora de quem vinha, só poderia significar destruir, arrasar ou eliminar os adversários e suas ideias. Depois de alcançada a almejada “purificação”, é que começaria a parte propriamente construtiva do programa do novo governo, qualquer que fosse ele.

A ignorância nunca ajudou ninguém e o anti-intelectualismo jamais foi boa coisa. Os primeiros sinais de alarme foram acionados com a agenda abertamente antiambiental, que incorporava o País oficial ao relativamente reduzido grupo de nações, à frente os Estados Unidos de Donald Trump, que negam as mudanças climáticas ou diminuem e ridicularizam a importância das ações humanas para atenuar tais mudanças. Nenhum “princípio de cautela” deve ser seguido, em hipótese alguma. Hábitos e comportamentos predadores não precisam ser regulados. Convenções e conferências do clima devem ser sabotadas, assim como as instâncias multilaterais que as organizam e os cientistas que nelas se envolvem. A destruição, aliás, deve começar por aqui: reservas ambientais e biomas inteiros, como o da Amazônia, passaram a ser oficialmente entregues a uma espécie de empreendedorismo “serra pelada”, inteiramente alheio a outras hipóteses de relação mais harmoniosa entre sociedade e ambiente que, por definição, não prescindem da contribuição da ciência e até mesmo das suas áreas de fronteira.

Sempre me pareceu não muito persuasiva a ideia de que as piruetas e os malabarismos ideológicos da direita radical no poder fossem um mero disfarce para decisões mais graves em outros setores supostamente decisivos, como a economia. Segundo esta versão, as tolices da ministra Damares, por exemplo, eram um diversionismo, enquanto Paulo Guedes, trabalhando sob tal cobertura, perpetrava o mal essencial. Propomos uma interpretação alternativa. Por certo, o liberalismo econômico na versão Guedes de inocente não tinha nem tem nada. Basta mencionar a referência “chilena” do seu pensamento – o Chile de Pinochet, bem entendido – presente muito especialmente na reforma da Previdência que tinha na cabeça e no consequente modelo de sociedade hiperindividualista que projetava. Ou a reforma tributária baseada no “imposto único”, de impacto social notoriamente regressivo, com a qual sonhavam os reformadores ultraliberais, sem jamais apresentá-la de corpo inteiro à sociedade e ao Congresso Nacional. Orientações de política, todas as duas, plenas de consequências regressivas, dificultadas em boa medida pela ação do Congresso, no caso da Previdência, ou momentaneamente suspensas por causa da grande crise sanitária que nos atinge, no caso da reforma tributária.

O fato é que, a nosso ver, o individualismo agressivo pressuposto no liberalismo de Guedes tem possibilidades mínimas – se é que tem alguma – de conciliar-se com o paradigma da “sociedade aberta” de extração popperiana, que o ministro alardeava em escritos anteriores ao novo status de Posto Ipiranga que adquiriu com o presidente Bolsonaro. Faz todo o sentido, ao contrário, relacioná-lo com as medidas “superestruturais” fundamentadas numa ideia de indivíduo “soberano”, desligado de responsabilidades cívicas e de qualquer laço social mais intenso, incapaz de entender a liberdade para além dos seus termos pura e simplesmente negativos, como ausência de qualquer limite ou constrangimento razoável, socialmente deliberado e aceito. Desligar os radares nas estradas, desativar os controles ambientais e brandir armas potentes para “garantir” a própria segurança formam um combo único com o extremismo econômico de Guedes. A sociedade, afinal, não existe – existem só os átomos desagregados que a compõem e se movimentam anarquicamente, da maneira que querem, tanto na economia quanto na vida comunitária ou naquilo que desta restar.

A obra de destruição, já avançada, continua enquanto a pandemia provavelmente está a caminho de nos transformar no foco mais perturbador da Covid-19 em todo o mundo. O negacionismo, tal como no caso do clima ou do ambiente, aqui também acarretará um cortejo ainda maior de enfermos e de mortos: pertence à crônica dos nossos dias o permanente choque entre o presidente da República, promotor de uma economia assediada pelos mortos, e os epidemiologistas e demais especialistas da saúde pública. Ninguém está a salvo, mas é certo que brasileiros como nós, só que mais desfavorecidos, são e serão mais atingidos e pagarão, como sempre, o tributo mais caro, o que só agrava a dimensão ética das questões em jogo.

Do fundo de um tempo sob o signo da morte, no entanto, talvez mais cedo do que pensamos surjam forças, inclusive de esquerda, em condições de recomeçar a lenta reconstrução da nossa casa comum arruinada, renovando os vínculos internos de solidariedade entre seus membros e reafirmando o lugar do País no mundo das democracias, do qual quer retirá-lo uma elite sem cultura, sem propósito, sem nada.