Paulo Gustavo

Sigmund Freud.

“Sabedoria é encontrada em toda a obra de Freud […] mas é preciso escolher uma entre as joias, e aqui focalizarei o livro intitulado O mal-estar na civilização.” Harold Bloom

“Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” é o que pontifica Italo Calvino em famosa página. Vale dizer: é um texto que fala a sucessivas gerações sem perder seu encanto. Vou falar de um jovem clássico, não sem antes pedir licença aos psicanalistas e estudiosos, embora depois de Sócrates e Montaigne também possa soar hipócrita se dizer que nada se sabe.

Este é um artigo de homenagem ao ensaio freudiano o “Mal-estar na civilização”, que neste ano completa 90 anos. Nessa grata circunstância, o que me vale é somente ser um leitor de Freud, um Freud que, à semelhança de tantos outros clássicos, é mais citado do que lido, mais imaginado que, de fato, conhecido. Não espero, naturalmente, num breve espaço de um artigo, abordar com qualquer profundidade toda a riqueza de um dos mais populares textos freudianos. O que vou dizer? Confesso que apenas chamar a atenção para alguns dos seus tópicos mais evidentes.

Freud, como se sabe, geralmente é claro. Como escritor, é incontestavelmente sedutor e simples. Via de regra, seus ensaios avançam como se tateassem, com humildade e persistência, em busca da verdade. Mas essa simplicidade pode ser enganosa. Em sua quase volúpia de ser claro e até didático, o que ele quer, como disse Hannah Arendt de si mesma, “é compreender”.

Em “O mal-estar na civilização” (“O desconforto na cultura” no original alemão), Freud atinge um dos pontos altos de sua produção intelectual. É uma platitude, mas é importante mencioná-la ainda uma vez. O texto é originalmente uma reação ao seu escritor e amigo Romain Rolland, a quem Freud enviara o ensaio “O futuro de uma ilusão”. Rolland, a propósito, lhe falara de um “sentimento oceânico”, um “ser-um com o universo”, um sentimento místico. Com a elegância que lhe é habitual, Freud, após indicar as características analíticas do Eu, vai responder que, além de nunca ter experimentado tal sentimento, vê Deus como uma projeção da figura paterna e que a finalidade da vida só existe “em função de um sistema religioso”. A religião, dirá ele, é uma espécie de delirante modificação da realidade para se suportar o próprio real. A realidade é dor (eis a face schopenhauriana de Freud), e os homens, a rigor, desejam ardentemente a felicidade e o prazer. Apesar disso, o sofrimento não lhes dá trégua. Freud nos diz que o sofrimento vem de três frentes distintas: do corpo, dos outros seres humanos e da própria realidade externa, que dispõe de forças poderosas para nos massacrar. Proust, uns dez anos antes, escrevera algo semelhante em “Em busca do tempo perdido” ao dizer que “há perigos internos e externos”, sendo os internos os que nos acometem em nosso próprio corpo. (Proust, segundo penso, é um dos precursores de Freud. Mas isso é outra história…)

Em síntese, prossegue Freud, o programa humano de ser feliz é… “irrealizável”. Se, por causa disso, a religião consegue poupar muitas pessoas de uma neurose individual, é de se notar, registra ele, que, pela mesma razão, muitas outras pessoas tornam-se neuróticas ou psicóticas…

Nesse ponto, Freud adentra o núcleo do ensaio, aludindo à crítica romântica de que a civllização/cultura seria, no fundo, a responsável por uma angustiosa insatisfação. Haveria rousseunianamente, na aurora dos tempos ou entre os povos ditos “primitivos”, uma espécie de paraíso perdido. A nossa civilização não passaria de um produto doentio, culpado por nossas dores atuais. Dever-se-ia abolir a civilização, como pregam alguns. É a essa altura que Freud recorre à psicanálise para nos mostrar que “beleza, ordem e limpeza” são instâncias civilizatórias a manter. É aí que evoca o seu conceito de “sublimação” como “renúncia instintual” e esteio da civilização. E mais ainda: lembra o seu conceito de instinto de morte, ou de destruição, conceito a que chegou, diz ele, não sem chocar seus próprios pares analistas. É aí que verdadeiramente mora o perigo para a civilização. Esse é o risco do qual temos que nos dar conta se não queremos agravar o próprio mal-estar. O pendor à agressão “é o mais poderoso obstáculo à civilização” e “Se a cultura impõe tais sacrifícios não apenas à sexualidade, mas também ao pendor agressivo do homem, compreendemos melhor por que para ele é difícil ser feliz nela”.

Finalmente, num dos momentos mais irônicos do texto freudiano, deparamo-nos com este desabafo que viria a ser desmentido pela posteridade: “Nenhum outro trabalho me deu a sensação, como este, de expor algo conhecido, de gastar papel e tinta e fazer trabalhar o tipógrafo, para falar de coisas evidentes”. O que nos recorda o nosso freudiano e imortal Nelson Rodrigues: “Profeta é quem vê o óbvio”. Mas, caro leitor, não termino com Nelson, quero terminar com o próprio Freud: “Acho que, enquanto a virtude não compensar já nesta vida, a ética pregará em vão”. Boa provocação! O homem estava inspirado. Feliz aniversário!