O livro de Manuel Castells (Ruptura: A crise da democracia liberal. São Paulo: Zahar, 2018) trata da crise da democracia liberal, centrada nos países desenvolvidos do Ocidente. Está dividido em cinco capítulos, com ênfase na Europa, particularmente França, Reino Unido e Espanha, e nos Estados Unidos. Contudo, é instrutivo para nós, brasileiros, pois nosso país vive situação similar. Aliás, o próprio autor sugere que os fenômenos que ocorrem naqueles países estudados existem em outros que vivem sob democracia liberal. Esta crise é um tema sempre em voga, sobre o qual existe, inclusive recentemente, uma enorme quantidade de títulos, entre artigos em revistas acadêmicas, jornais e magazines, além de livros e capítulos de livros. Alguns destes títulos tornaram-se Best Sellers. Um exemplo é o livro de Steven Levistsky e Daniel Zibaltt: Como as democracias morrem. Outros títulos não foram campeões de vendas, como o livro de Adam Przeworsky – Crises da democracia -, apesar do prestígio e reconhecimento internacional do autor entre os cientistas sociais.
Ruptura é um livro de leitura fácil, despido de clichês e sociologuês, a linguagem cifrada dos sociólogos. É um livro praticamente sem referências bibliográficas e que flui, na leitura, com rapidez. Para isso, além da clareza do texto, o autor utilizou o artifício de colocar todos os dados, tabelas e gráficos em uma base na Internet, a que o leitor é remetido a consultar: www.zahar.com.br/livro/ruptura.[1] Nela podem ser encontrados os dados e as fontes utilizados para construir a exposição. É um artifício interessante, pois permite a leitura por uma gama mais vasta de leitores, ao mesmo tempo que oferece aos acadêmicos os dados que sustentam a sua tese. Castells, assim, se afasta do puro ensaísmo, muito em moda em tempos de crise, embora o corteje, pois, as suas reflexões vão bem além dos dados.
A tese de Castells é que a democracia liberal está em crise porque os partidos não conseguem mais representar os eleitores e os governos, por sua vez, não conseguem mais representar os cidadãos. Ou seja, os eleitores não se reconhecem nos representantes e os cidadãos não encontram respostas a suas demandas, na clássica diarquia entre eleitores e cidadãos.
Para o sociólogo espanhol há uma crescente desconfiança em relação aos governos democraticamente eleitos, sejam de esquerda ou de direita. Essa desconfiança se propagada em relação às instituições governamentais em quase todo o mudo e deslegitima a representação política. Para Castells este é o significado das amplas mobilizações populares contra os governos e os partidos políticos no poder. O significado destas mobilizações, que atravessaram o mundo desde 2011, é sintetizado no lema mundialmente conhecido “Não nos representam”, presente, entre outras, nas mobilizações espanholas. Não se trata de uma rejeição à democracia, mas à democracia liberal, com crescimento, simultâneo, de partidos nacionalistas e neonazistas em plena vigência do jogo democrático. Isso está ocorrendo, inclusive, na Alemanha, “a rocha da estabilidade europeia”, na qual os social-democratas caíram a apenas 20% do eleitorado em 2017, enquanto os neonazistas (Alternativa para a Alemanha) alcançaram 13%, tornando-se a terceira forca política do País, superando os verdes e os liberais.
Segundo Castells, “Mais de dois terços dos habitantes do planeta acham que os políticos não os representam, que os partidos (todos) priorizam seus próprios interesses…e que os governos são corruptos”. As raízes da cólera popular encontram-se no processo de globalização que desestruturou as economias nacionais e limitou a capacidade do Estado-Nação, e cujas insuficiências foram acentuadas com a crise econômica de 2008/2009. Isso ficou claro porque os problemas mais relevantes hoje, e que impactam as vidas das pessoas, como o aumento do desemprego ou a degradação das condições ambientas de vida, são de origem global: crises financeiras, mudanças climáticas, terrorismo, inovação tecnológica, corrupção, economia da contravenção e migração. É verdade que as “camadas de profissionais de maior instrução” (elites cosmopolitas) têm sido favorecidas com a globalização, mas o mesmo não acontece com a massa de trabalhadores formais, e menos ainda com os informais. Isso tem levado ao crescimento das desigualdades sociais, inclusive nos países mais desenvolvidos. Fenômeno que está por trás da vitória de Trump, do Brexit, assim como, do crescimento dos partidos nacionalistas de direita na Europa, todos apoiados pelo voto de pessoas mais velhas, operários e eleitores de meios socioterritoriais marginalizados, incluindo as pequenas cidades e antigas zonas industriais decadentes.
Uma das consequências (e causa) desse fenômeno de crise democrática é a constituição do Estado Rede, que se substitui ao Estado Nação, alimentando uma crise identitária. Segundo Castells, este tipo de Estado articula os grupos sociais que habitam a Nação a partir de discursos particulares que enfatizam suas especificidades e diferenças. Dessa forma, incrementa-se uma fratura cultural que se une à fratura social, pois a “identidade política” vai sendo gradativamente substituída pela “identidade cultural”. Desfaz-se a identidade de esquerda ou direita, em favor de uma identidade de grupo, território, corporações e movimentos.
Para o autor, a crise econômica de 2008/2009 foi um fator que acelerou a erosão da legitimidade política dos partidos e das instituições democráticas nos países estudados, pois enquanto os bancos eram socorridos, a política de ajuste econômico adotada alimentava o desemprego e corroía a oferta de serviços públicos para a grande maioria da população. A isso se somaram os escândalos de corrupção em vários países europeus (Itália, Espanha, França) e não europeus, como o Brasil. Em 2013, na União Europeia, 80% dos habitantes acreditavam que há corrupção nas instituições de seu país. Em 11 países, entre os quais Grécia, Espanha, Hungria, Lituânia e República Tcheca, este índice superou 90%. Sem dúvida, a percepção da corrupção – “uma característica sistêmica da política atual” – é um dos fatores que mais corroem a legitimidade das instituições democráticas, levando a que a separação entre o econômico e o político se esfume. Ademais, a corrupção alimenta a política do escândalo, em que os controles e censuras tradicionais se desativam e o “mundo da pós-verdade se instala”. Assim, o vínculo entre o pessoal e o institucional se rompe.
O terrorismo é outro fator que alimenta a crise das democracias liberais. A introdução da “política do medo” faz com que os cidadãos permitam ser vigiados e controlados eletronicamente. Os objetos das precauções são sempre os outros, aqueles de etnia, cor da pele e cultura diferentes. A fonte principal do terrorismo é o desprezo da cultura islâmica pela cultura ocidental, conforme Edward Said (Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010). Mas, no caso da Europa, o terrorismo tem três fatores mais imediatos: a discriminação de 20 milhões de muçulmanos, mais da metade nascida em solo europeu; a referência ao Jihad global, que atrai jovens de várias nacionalidades; e a busca de sentido pelos jovens, que parece ser a motivação mais profunda.
Apesar de todos os fatores citados, entre outros, o mais constante e universal da crise da democracia liberal reside no fenômeno da globalização. Na minha opinião, seria melhor dizer que se ergue a partir da sua base, a aceleração das mudanças socioeconômicas, em parte alimentadas pela velocidade das inovações e disseminações tecnológicas que se inicia no final do século passado. Esse fenômeno, que ocorre de maneira mais acentuada nos territórios onde se desestrutura a dinâmica econômica, e nestes aumenta a insegurança e a angústia entre os humanos. Provoca movimentos de fuga em direção ao Estado, à religião, à família ou à etnia. Ressuscitando-se, assim, valores tradicionais que pareciam inexistentes ou em extinção.
Nos quatro países estudados por Castells (Estados Unidos, eleição de Trump; Reino Unido, Brexit; França, eleição de Macron, e Espanha, mobilizações que levaram à criação do Podemos e à derrocada do Partido Popular, partido conservador hegemônico no governo) a globalização foi o inimigo comum. Na percepção dos eleitores e cidadão, a globalização era (é) o bode expiatório de todas as mazelas, do desemprego à imigração, passando pela corrupção,
Em grande parte, a possível, e desejada pelo autor, reconstrução da legitimidade política passa pela afirmação de um líder ou uma causa em “contradição com as instituições deslegitimadas”. Daí a esperança, abrigada por milhões, de uma nova politica. Aliás, não foi este o mote que elegeu Jair Bolsonaro presidente, assim como Trump?
Uma leitura atenta permite constatar algumas lacunas na argumentação de Castells. Duas pelo menos são muito importantes.
A primeira é saber a que se refere a crise: à democracia liberal ou ao governo representativo? Os dois não podem ser confundidos. Afinal, o governo representativo contém elementos democráticos e não democráticos, conforme Bernad Manin (Hélène Lemore). A democracia representativa é realmente democrática? Entrevista com Nadia Urbaniti e Bernard Manin. Dois Pontos, Curitiba/São Carlos, 13 (2), 2016.). A pergunta é relevante porque parte das manifestações e protestos que Castells estuda ou apenas cita são demandas de mais democracia, como é o caso da “Primavera Árabe” e mesmo dos ‘Indignados” na Espanha. Os espanhóis, na essência, protestavam contra as manobras de políticos para minimizar ou desrespeitar o jogo democrático por meio da corrupção ou da interferência do poder econômico no jogo democrático. Portanto, esses protestos foram contra os desvios do governo representativo, e não contra as democracias em si. No norte da África e Oriente Próximo as pessoas se manifestaram, uns de forma mais aguda do que outros, em 18 países, entre os quais Tunísia, Egito, Líbia, Síria e Argélia, contra os governos autoritários. Todos, portanto, em favor da democracia, embora não tenham sido, em geral, vitoriosos.
A segunda lacuna relevante é que o autor de Ruptura não toma suficientemente em conta o crescimento da desigualdade social entre os países e no interior dos países, inclusive países desenvolvidos e com democracia consolidada. Esse fosso que se escava no mundo tem como um de seus efeitos reduzir o papel das classes médias (e não falo de trabalhadores com melhores salários, como se fez no Brasil na época de Lula). Ora, a base da democracia liberal, sobretudo após a II Guerra Mundial, período da expansão democrática, foi o crescimento da economia e das classes médias. Na segunda década do século XXI, o crescimento econômico e das classes médias apenas se arrefecem. Sobretudo, agora, com a pandemia da covid 19
Essas duas críticas, porém, não tiram o valor do livro de Castells e a sua pertinência para entender melhor o processo de mudança em escala mundial, no qual o mundo ocidental está envolvido, Brasil inclusive.
[1] Recurso também utilizado por Ray Kurzweil (A singularidade está próxima. São Paulo: Iluminuras, 2018), entre outros. Com um detalhe a mais, as referências deste livro remetem a bancos de dados que se atualizam frequentemente.
A esquerda europeia está aos poucos destruindo a democracia, principalmente a liberdade de expressão. A invasão islâmica é outro perigo que irá solapar a democracia europeia. Imagina Erdogan instaurando uma república islâmica na Turquia e indo fazer comício em Bruxelas, Berlim e Paris. A China é outro fator de desequilíbrio, porque muitos países estão em sua dependência econômica. O Brasil é um deles.
Meu caro Elimar
Na linha deste teu texto, vejo que uma das características mais marcantes da nossa crise da democracia liberal se reflete na excessiva fragmentação de partidos e outros núcleos de organização politica, facilitando a polarização de poder que nos deixa, a maioria, num “corredor polonês” entre uma corrente que se diz de esquerda (exquerda?) e os bolsonaristas. No meio, o povo apanha dos dois lados e está perdido entre tantos outros candidatos minoritários. Há que haver uma concertação desta maioria.
Sem dúvida meu caro Aécio. O maior desafio é organizar a maioria.