Paulo Gustavo

Emily Shullaw for the Wisconsin Center for Investigative Journalism.

Ninguém está pronto para o tédio, esse mal-estar interior que mais se assemelha a uma flutuação no vazio. Por estes dias, com a pandemia do coronavírus e o confinamento da população, muita gente ficou cara a cara com o tédio. O tempo, então, apresentou-se de outra forma, sobretudo pela monotonia, pela repetição, pela esterilidade de sentido. O enfado para muitos passou a ser atordoante e cáustico, capaz de esgotar reservas de razoável energia psíquica. Por outro lado, como venho falando, a pandemia veio nos dizer, em negativo, que para nós, primatas e humanos, tudo é aglomeração e manipulação. Daí tantas dificuldades nas adaptações. É como se a vida em comum tivesse ficado por um momento em quase completo suspense. Muitas âncoras tiveram que ser jogadas ao mar, muito mar teve que ter domadas suas ondas ainda desconhecidas.

Com a pandemia, o “nevoeiro silencioso” do tédio (a imagem é de Heidegger e Alberto Moravia) veio minar nossa resistência, pôr à prova a fundação de nossos comportamentos. Mas o tédio não é somente um sentimento estranho e difícil de definir, é igualmente uma questão filosófica nada desprezível. É o que mostra o filósofo norueguês Lars Svendsen. No seu ensaio “Filosofia do Tédio”, ele põe em perspectiva a densidade existencial do tédio. Neste breve artigo, não pretendo resenhar o livro de Svendsen, mas tão somente estabelecer alguma correspondência entre algumas de suas observações e as circunstâncias que a vida em confinamento nos propõe.

À parte a eventual sobrecarga de tédio advinda com a pandemia, é preciso reconhecer, segundo o filósofo, que o tédio “Não é apenas um estado mental interior; é também uma característica do mundo, pois participamos de práticas sociais saturadas de tédio”. Enfim, uns se entediam com o mundo enquanto outros se entediam consigo próprios. No atual confinamento, o tédio do mundo foi quebrado por um evento global fortuito, poderoso, e que curiosa e paradoxalmente deságua no tédio pessoal, este sobretudo disparado por uma nova relação com o tempo.  Svendsen observa que “O tédio normalmente surge quando não podemos fazer o que queremos ou temos de fazer o que não queremos”. Essa é a carapuça que a pandemia pôs em todas as cabeças. Como se livrar dela?

No confinamento, o vazio do tédio desafia nossas forças interiores. Na vida em geral, o tédio inspira a criação e impulsiona novas ações, é como diz o filósofo: “A enorme ênfase que damos à originalidade e à inovação revela que a vida, em grande medida, é entediante”. Nesse sentido, o confinamento há de nos fazer descobrir novos e até insuspeitados interesses. De resto, que dizer do tédio que para muitos já impregnava a existências antes mesmo da pandemia e do isolamento social?

Como se sabe, alguns psicólogos observaram, dentre os sobreviventes do Holocausto, que muitos possuíam em comum uma espécie de controle íntimo sobre a situação adversa. Algo semelhante, também ocorreu do lado dos nazistas. Há o exemplo emblemático de Albert Speer que na prisão de Spandau, nos arredores de Berlim, além de escrever profusamente, chegou, ao longo de dezenove anos, a caminhar 31.936 quilômetros sobre um mapa do mundo imaginário! A lição é óbvia: dotar de significado o que se faz, embora nem tudo que se faça tenha significado. As pessoas em geral desejam tempo livre, mas o que fazem verdadeiramente de bom quando têm esse tempo livre? Matam-no da maneira mais covarde, desperdiçando-o inconsequentemente.

No caso do confinamento, muitas pessoas descobriram que a passagem do tempo, desacelerada pela redução da vida frenética, resultou numa guinada violenta que as colocou diante de um invisível, mas poderoso espelho. Algo assim ocorre com o silêncio (que também deu o ar de sua graça), pois, como observa Guimarães Rosa pela voz de Riobaldo: “O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais”. Deparar-se consigo mesmo nunca foi exercício fácil. Enquanto isso, o mundo lá fora é, nas palavras de Svendsen, “[…] uma corrida desordenada às diversões, ao lazer, [que] indica precisamente o medo do vazio que nos cerca”, pois diz ele: “Não suportamos viver sem algum tipo de conteúdo que possamos ver como constituidor de significado. A falta de sentido é entediante […] O tédio pode ser compreendido como um desconforto que comunica que a necessidade de significado não está sendo satisfeita”.

À exceção dos casos patológicos (é claro que o tema da saúde mental pessoal e coletiva permeia a situação de confinamento), o tédio, dispensável dizer, é precioso na medida em que nos obriga a ressignificar valores e conteúdos. Posto em perspectiva e em dialético contraste com o repertório do mundo, ele nos faz reconsiderar os hábitos e sair do automatismo opressor a que nos entregamos. Somado ao confinamento, pode servir de fonte e de estímulo a uma reinvenção criadora.