José Paulo Cavalcanti Filho

Mural em homenagem a George Orwell (autor desconhecido).

A Câmara dos Deputados vai votar Projeto, aprovado pelo Senado, de uma Lei da Internet (2.630/2020).  Na contramão da história. Porque problemas globais devem ter soluções globais. Vem sendo sempre assim. Como nas guerras, que nos fazem lembrar definição de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos, Ode Marcial): “Tudo misturado, tudo misturado com corpos, com sangues/ Tudo um só rio, uma só onda, um só arrastado horror”. E mesmo elas mereceram uma sucessão de tratados. Sobre feridos com proteção da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (em 1864). Sobre tratar prisioneiros com humanidade e respeitar religiões (1939). Sobre a proibição de usar escudos humanos (1949).

Já nas comunicações, havia só o Telecomunications Act dos Estados Unidos (1901). Nenhum outro país tinha lei similar. Até que veio, em 16/4/1912, o naufrágio do RMS Titanic. Não propriamente um acidente náutico. Mas das comunicações. Que os passageiros morreram, quase todos, por hipotermia. Congelados nas águas glaciais do Atlântico Norte (a leste da Ilha da Terra Nova, Canadá). Num percurso de duas horas e 40 minutos em que tudo poderia ter mudado.  Entre 23:40 do domingo, quando o navio atingiu um iceberg; e 02:20 da segunda, quando afinal afundou. Por haver quatro navios a menos de uma hora do local. Um, a menos de 30 minutos. Se qualquer deles tivesse chegado a tempo, e com certeza haveria bem menos perdas que os 1.496 (dos 2.435 passageiros e tripulantes) que lá deixaram suas esperanças. Ninguém, talvez. O Carpathia chegou ao local só hora e meia depois de tudo consumado. E já era tarde. Problema foi que ninguém ouviu o Mayday do Titanic.  O que levou à definição das frequências, na Convenção Internacional para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar – SOLAS, de 1914. Na qual, entre outras providências, acabou se reservando faixa que passou a ser usada só para comunicações de socorro.

Com Títulos de Crédito deu-se o mesmo. No Brasil, eram regulados pelos Decretos 2.044/1908 e 2.591/1912. Cada país tinha suas normas. Com graves problemas para a internacionalização do comércio. Até que veio a Convenção de Genebra, em 19/03/1931. Quando todos passaram a ter uma só e mesma Lei Uniforme sobre Cheques e outros Títulos de Crédito. Em que brilhou a única invenção reconhecida incontestavelmente, como brasileira, por todos os países. A Duplicata Mercantil.

A internet precisa de algo assim. Planetário. Mais abrangente. Para que o sistema possa funcionar corretamente.  Em vez apenas de regulamentação por países isolados. Maior problema, que dificultava um grande acordo, era o controle dos endereços. Algo particularmente importante por ser finita, essa quantidade. Decorrendo, sua distribuição, de uma demanda mais econômica (privada) que social (pública). E, sobretudo, por permitir (em tese) interferências políticas – como tirar do ar um endereço específico, ou um conjunto inteiro de endereços (por exemplo, um país).

Ocorre que esse assunto já foi resolvido. Com o término, em 1º/10/2016, do contrato entre Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números – ICANN e Administração Nacional de Comércio dos Estados Unidos.  Passando o ICANN, uma organização global sem fins lucrativos, a ser responsável por coordenar manutenção e procedimentos das várias bases de dados relacionados aos espaços de nome e espaços de números na internet. Garantindo uma gestão estável, e segura, da rede. Esse grande acordo internacional virá, cedo ou tarde, por uma razão simples. A de ser inevitável que venha.

Ruim, no caso, é que nossos congressistas pensam o Brasil a partir de seus próprios interesses. Leis contra a corrupção, para que?  Prisão em segunda instância, para quê?  Acabar cartórios privados, para quê? Limitar salários de certas castas de servidores públicos, para quê? Fim do Foro Privilegiado, para quê? Ninguém tem pressa nisso. Mas regular um espaço de Liberdade, como a internet, é diferente. Porque sentem-se ameaçados. E querem, com celeridade máxima, ver tudo sob controle. Na prática é como se, de uma forma torta, quisessem copiar a China. Onde uma Polícia da Internet tem acesso a tudo que circula nas redes. O número de funcionários públicos, dedicados a isso, não é divulgado. Mas, para uma ideia de grandeza, especula-se que poderia ser algo entre 30/50 mil e 2 milhões. Alocados na Administração do Ciberespaço da China e outros órgãos estatais.

O que se alega, por aqui, é mais singelo. Apenas que deva ser um antídoto contra mentiras. Todas? Que nada, leitor amigo. Só as da internet (art. 1º). Ao menos todas as da internet, então? Nada. Só as das grandes redes, a partir de dois milhões de usuários (art. 1º, § 1º). Deixando fora, mesmo quando sistematicamente divulguem mentiras, empresas jornalísticas tradicionais (art. 5º, § único). Para ter apoio nos seus editoriais, é lícito especular. E tudo sob a supervisão de um Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet (arts. 25/29). No qual terão assento Senadores e Deputados, era previsível, mais algumas corporações de suas escolhas. Em tudo lembrando o Grande Irmão de Orwell (1984).

Mais grave é que o Projeto foi aprovado, no Senado, sem qualquer debate.  Uma conspiração do silêncio. Passando a sensação de que pretendem, sobretudo, inibir a circulação de ideias. Especialmente quando façam críticas, ou se refiram, ao poder – grande mídia, partidos políticos, parlamentares, autoridades em geral (entre elas, Ministros do Supremo). Ou pretendam substituir as campanhas políticas tradicionais. Movidas a grana. Ou pelo poder das corporações – igrejas, sindicatos, a máquina do Estado prestando serviço a seus protegidos. Em vez desse outro tipo de comunicação, nas redes sociais. Menos susceptível à corrupção. Mais aberta. Mais democrática. Uma limitação que é péssima para a Liberdade. Como se a intenção fosse colocar tornozeleiras eletrônicas na internet. Imitando Fabrício Queiroz e outros. Para constranger seus movimentos. E seu alcance.

No fundo, é como se voltassem à velha e conhecida “musa da censura”, como a definia George Steiner (Linguagem e Silêncio). Podendo, ainda, ficar armazenados “todos os conteúdos” que estiverem nas redes (art. 6º), nos celulares (art. 10), nos e-mails (art. 32). Para ser utilizados sabe Deus quando. Ou como. Ou por quem. O que significa, para aproveitar título do livro de Arthur Miller, um Assalto à Privacidade. É pena. Amanhã, talvez demasiado tarde, saberemos o preço que a Democracia brasileira vai pagar para atender à conhecida e complexa teia dos pequenos interesses que habitam o Congresso Nacional.