Jorge Zaverucha (*)

O Professor Lênio Streck publicou um artigo intitulado “Interpretações equivocadas sobre intervenção militar no artigo 142 da Constituição Federal de 1988”. O mencionado autor cita, nominalmente, minha pessoa como sendo um destes intérpretes errôneos—juntamente com Yves Gandra Martins e Vladimir Safatle. Como não tenho procuração dos dois professores, refutarei o argumento errôneo de Streck por minha única responsabilidade.

Streck baseou sua crítica ao meu argumento usando um pequeno artigo publicado na página de opinião da Folha de São Paulo, embora, tenha tratado deste tema com mais profundidade em três dos meus livros.[1] O Professor acusa os dois colegas citados de cometerem “perigoso erro de hermenêutica”. Imagino que Streck, também, ache que cometi o mesmo deslize. Dele tenho profunda discordância e divirjo parcialmente do posicionamento de Gandra Martins. Explicarei posteriormente.

 Streck se arvora a crer que possui a única explicação correta para um artigo que salta aos olhos por sua dubiedade. Em tom arrogante, conclui que quem tiver uma interpretação distinta da sua possui uma “interpretação desviante do artigo 142”. A literalidade do texto não pode ser o único método de interpretação constitucional. Tanto é que Streck e Gandra Martins, são juristas e interpretam de modo distintos o referido artigo. Noves fora cientistas sociais como Safatle e eu.

Mais humilde, reconheço a possibilidade de existir mais de uma interpretação do artigo 142. Afinal meu mindset é político e o de Streck jurídico. Por isto mesmo, não diria que Streck tenha desviado da correta hermenêutica. Apenas que sua hermenêutica difere da minha. E qual é a minha? Começarei pela dimensão histórica, completamente, esquecida por Streck. Ao final tecerei algumas considerações de ordem teórica.  Mais importante do que creem os juristas, o que prevalece, ao final, é a interpretação das Forças Armadas sobre tal artigo. E este é o motivo pelo qual tanto fazem questão de manter a expressão garantes da lei e da ordem no texto constitucional.

Histórico

A cláusula “obediência dentro dos limites da lei” apareceu primeiramente na Constituição de 1891, por obra dos civis que pretendiam limitar um possível excesso do presidente no uso do Presidente no uso das Forças Armadas. O general-presidente Deodoro da Fonseca se opôs a essa cláusula, por temer que seus subordinados usassem a ambiguidade para atingir a disciplina militar. Em 1937, durante a ditadura varguista a cláusula desapareceu, com o apoio das Forças Armadas. Numa situação de proeminência militar, as Forças Armadas demandaram obediência não apenas dentro do limite da lei, mas em termos absolutos. Cláusula ainda mais ambígua, atribuindo às Forças Armadas a garantia da lei e da ordem, apareceu na Constituição democrática de 1946 e na Constituição autoritária de 1967, bem como sua emenda de 1969.

Não se pode esquecer da acalorada disputa entre os constituintes e os militares pelos termos da redação do artigo 142. Os constituintes, em 1987, na primeira versão da Constituição, retiraram dos militares o tradicional papel de guardiães da lei e da ordem. Tal tentativa irritou o general Leônidas Pires Gonçalves. Ele ameaçou zerar todo o processo constituinte, caso a decisão não fosse revista. Os militares não abrem mão de seu poder de tutelar o país adquirido deste os primórdios da República. Ante a ameaça, os constituintes cederam em pontos secundários, mas mantiveram o papel de garantes das Forças Armadas. Em outras palavras, os congressistas não quiseram se comprometer a fazer escolhas em favor de uma democracia que poderia vir a ser consolidada. Mas, hoje sabemos que não o foi.

O artigo 142 entra em choque com outros artigos da Constituição. O artigo 137, por exemplo, trata de estado de sítio, ou seja, uma situação em que a lei e a ordem estão em perigo. De acordo com este artigo, o Presidente depende de autorização do Congresso para declarar estado de sítio. Se o Congresso não considerar que a lei e a ordem estão em perigo, o Presidente não pode solicitar a intervenção militar. Ao aplicar o artigo 142, todavia, ele pode passar ao largo da decisão do Congresso e pedir aos militares que restabeleçam a lei e a ordem.

A redação original do artigo 142 passou por mudança devido ao ocorrido, em 9 de outubro de 1988. Nesta data, 1.300 soldados do Exército e da PMRJ foram chamados para debelar uma greve dos funcionários da Companhia Siderúrgica Nacional. A tomada da CSN acarretou na morte de três operários desarmados e que trabalhavam na searia para evitar que a usina parasse. Surgiu um impasse: cláusulas ambíguas foram capazes de renegar compromisso prévio. A Constituição reconhecera o direito de greve. Portanto, a paralisação em Volta Redonda fora legal, e não uma rebelião, assalto, ou ação guerrilheira. O então senador Fernando Henrique Cardoso exigiu que Sarney demitisse seu ministro do Exército, por ter decidido movimentar tropas sem o consentimento do presidente. Ele criticou a falta de resolução de Sarney em enfrentar seus subordinados militares.

A verdade é que Sarney não poderia demiti-lo. Lembremos que pelo artigo 142 original, o Judiciário, ou seja, qualquer instância do mesmo, tem o direito de pedir a intervenção militar quando julgar que a lei e a ordem estão em perigo. Portanto, o general Leônidas Pires cumpriu sua obrigação constitucional de mover tropas ao receber o pedido do juiz da 4ª. Vara de Barra Mansa, para garantir a lei e a ordem. As Forças Armadas aproveitaram a ocasião para usar blindados e armas de assalto para esmagar a greve.

Volta Redonda provou a nulidade do argumento dos constituintes de 1987 de que era necessário estender ao Judiciário e ao Legislativo o direito de pedir a intervenção das Forças Armadas, para limitar o poder de ação do presidente. Como tal artigo não define que instâncias do Judiciário poderiam pedir a intervenção, qualquer juiz passou a se achar no direito de fazê-lo, sempre que considerasse necessário. O mesmo ocorreu com o Legislativo. Cada parlamentar, mesmo em primeiro mandato, passou a se achar no direito de convocar as Forças Armadas. Assim o artigo 142, em vez de dificultar a intervenção das Forças Armadas, abriu um novo espaço para a ingerência dos militares nos assuntos internos do país.

Os próprios militares não ficaram satisfeitos com esta redação pois não quiseram exercer papel de polícia para dirimir contendas particulares, como por exemplo, desapropriação de terras.  Diante da pressão, o texto original do artigo 142 sofreu alterações, para melhor esclarecer o emprego das Forças Armadas. A Lei Complementar no. 69, de 23 de julho de 1991, dispôs no seu artigo 8º. que “o emprego das Forças Armadas, na defesa da Pátria, dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, é da responsabilidade do Presidente da República, que o determinará aos respectivos Ministros Militares”. E estabelece no §1º. que “Compete ao Presidente da República a decisão do emprego das Forças Armadas, por sua iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por qualquer dos poderes constitucionais, através do Presidente do Supremo Tribunal Federal ou do Presidente do Senado Federal ou do Presidente da Câmara de Deputados, no âmbito de suas respectivas áreas”. Deste modo, apenas as três altas autoridades da República podem solicitar a movimentação de tropas ao Presidente da República e cabe, tão somente a ele, decidir se acata ou não o pedido feito.

Streck em nenhum momento citou esta, tão importante, Lei Complementar em seu artigo. Por isto ele é inexato ao dizer que pelo artigo 142 qualquer poder constitucional pode requerer, diretamente, às Forças Armadas o seu emprego para garantir a lei e a ordem. Curiosidade: a ideia de garantes foi copiada pelas constituições autoritárias pinochetistas e sandinistas. No Chile, todavia, findo o regime militar, este artigo foi abolido. No Brasil persiste até os dias de hoje, mesmo a esquerda tendo governado o país, por mais de quinze anos. No fundo, a luta pela manutenção do artigo 142 é porque ele define quem de fato estabelece o controle social do país em situação de crise. Um sinal de que nossa elite não possui um ethos democrático. Apostam num governo democrático eleitoral em vez de um regime democrático. Ao longo do tempo outros sinais apareceriam nesta direção que não serão tratados neste momento. Mas que podem ser encontrados nos meus livros citados.

Mas, como é possível às Forças Armadas se submeterem ao Presidente da República, na qualidade de comandante-em-chefe, e garanti-lo simultaneamente? Segundo Giorgio Agamben, “o soberano, tendo o poder legal de suspender a lei, coloca-se legalmente fora da lei”. Portanto, cabe às Forças Armadas brasileiras o poder soberano e constitucional de suspender a validade do ordenamento jurídico, colocando-se legalmente fora da lei. Numa democracia, Forças Armadas não garantem nem os Poderes constituídos nem a lei e a ordem. É exatamente o reverso. Uma ideia central na obra de Agamben é o “estado de exceção”, ou seja, a declaração pela qual um governo se atribui mais poderes sobre seus sujeitos em nome de circunstâncias excepcionais (guerra, grave desordem, catástrofe natural etc.). Numa sociedade profundamente desigual, o fantasma da convulsão social sempre esteve e está presente.

O artigo 142 é ambíguo. Pode ser interpretado de modos distintos, de acordo com os interesses dos atores envolvidos. Ressalte-se que a mobilização das Forças Armadas para assuntos externos tem uma especificação constitucional muito nítida. A raiz do problema é saber quem define o que é ordem e que tipo de lei, ordinária ou constitucional, as Forças Armadas devem, supostamente, defender. O artigo 142 permite o golpe de Estado constitucional. Por isso mesmo, nenhuma democracia que se preze insculpe tal artigo em seu texto constitucional. A defesa da Constituição de 1988 pode significar acastelar uma solução autoritária. Por isto, a disputa pela redação do artigo 142 é deveras importante. A narrativa castrense sobre 1964 é que não houve golpe de estado pois as Forças Armadas aplicaram o equivalente ao artigo 142 que permitia a atuação delas como garantes da lei e da ordem.

Ordem não é um conceito neutro, e sua definição operacional em todos os níveis do processo de tomada de decisão política envolve escolhas que refletem as estruturas políticas e ideológicas dominantes. Portanto, a noção de (des)ordem envolve julgamentos ideológicos e está sujeita a estereótipos e preconceitos sobre a conduta (in)desejada de determinados indivíduos e/ou grupos. Além do mais, tal artigo não especifica se a lei é constitucional ou ordinária, se a ordem é política, social ou moral nem quem define quando é que a lei e a ordem foram violadas.

Conceituação e interpretação

Segundo Voltaire, antes de se iniciar uma discussão convém esclarecer os conceitos que serão utilizados. Por questão de espaço fiquemos no conceito de autonomia. Streck não o define categoricamente, mas por duas vezes diz que “não há de se falar em autonomia da parte de quem porta armas, como polícia e forças armadas”. No sentido de que tais instituições coercitivas não poderão ter a palavra final sobre o uso das armas, cabendo esta decisão a um Poder eleito, que redigiu a Constituição. Diria eu, na teoria.

Meu conceito é mais político do que jurídico. O comportamento militar é politicamente autônomo quando os militares têm objetivos políticos próprios que podem ou não coincidir com os interesses de outros grupos políticos, e a capacidade institucional de executá-los, em detrimento de regras democráticas que proíbam a consecução destes mesmos objetivos. Ou seja, o governo tem autoridade limitada para gerar novas políticas, pois, muitas vezes, tem de dividir seu poder com as Forças Armadas. Portanto, a decisão final sobre o uso de armas não é, necessariamente, do Poder eleito, mas, também, das Forças Armadas. Afinal, a própria redação do artigo 142 foi feito sob a Espada de Dâmocles do general Leônidas. Por esta definição de autonomia, abre-se a possibilidade das Forças Armadas não apenas defender a sociedade, mas procurar defini-la de acordo com a visão castrense do que é o melhor para ela.

A luta sem tréguas das Forças Armadas pela redação do artigo 142, inexistente, repita-se em qualquer democracia sólida  é para que os militares possam se valer do que se chama de “jogo duro constitucional” descrito por Fishkin e Pozen.[2]  Ou seja, manobras políticas que, neste caso, esticam em demasia uma convenção constitucional. Este modo de jogar, i.e, pressionar os limites da democracia, está cada vez ficando mais comum nas democracias. Na hora da crise aguda, o artigo 142 pode ser tensionado ao ponto de gerar, no limite, o golpe de estado constitucional.

Uma cláusula constitucional não tem o poder de coibir a intervenção das Forças Armadas. Qualquer cláusula da Constituição pode ser violada, seja a que garante os direitos de propriedade, seja a da licença maternidade. Os obstáculos legais não inviabilizam um golpe de estado: apenas os tornam mais difíceis de realizar. Se não houvesse obstáculos, as tentativas de golpe sem risco de punição seriam item obrigatório na lista de possibilidades de ação dos militares.

E é por isto, que convirjo, parcialmente, com o professor Yves Gandra Martins. Concordo quando o mesmo afirma que as Forças Armadas podem intervir para sanar uma disputa entre Poderes. Infelizmente, ele para por aí. E se o Presidente da República, que é o comandante-em-chefe das Forças Armadas entrar em choque com o Alto Comando das Forças Armadas acerca da lei e da ordem o que ocorrerá? Certamente, não será nem o STF nem o Presidente do Congresso que pacificarão a disputa. Vencerá quem obtiver maior apoio castrense, e no Brasil, as Forças Armadas, como instituição, sempre prevaleceram sobre o Executivo civil.

Na prática, já há exemplos em que as Forças Armadas intervieram em assuntos mais comezinhos em supostos casos de insurgência guerrilheira no Pará sem o consentimento do Presidente da República ou na vigilância cerrada sobre os membros do Sem Terra. Sem que precisassem prestar contas ao Congresso e ao Presidente. Os líderes militares sempre justificaram suas atitudes como sendo legais pois eram, segundo eles, baseadas no caráter ambíguo do artigo 142. E continuarão a assim se comportarem enquanto tal artigo não for revisto. Existe proposta para isto no Congresso Nacional. Mas não há vontade política de aprová-lo.Como lembra Huntington, as características que envolvem a intervenção militar em assuntos domésticos devem ser procuradas não apenas nos atributos sociais e organizacionais do establishment militar, mas nas estruturas políticas e institucionais da sociedade.[3]

(*) Doutor em Ciência Política pela Universidade de Chicago, é professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da UFPE.

 

[1] Rumor de Sabres—Tutela Militar ou Controle Civil, Ed. Ática (1994); Frágil Democracia—Collor, Itamar, FHC e os Militares, Ed. Civilização Brasileira (2000) e FHC, Forças Armadas e Polícia—entre o autoritarismo e a democracia, 1999-2002, Ed. Record (2005).

[2] Fishkin, Joseph e Pozen, David. “Asymmetric Constitutional Hardball” in Columbia Law Review, vo.118, pp. 915-82, 208.

[3] Huntington, Samuel. Political Order and Changing Societies. New Haven: Yale University Press, 1968.