Há praticamente um ano, em parceria com a Universidade Pública de Navarra, na Espanha, a Editora Laetoli publicava “El pensamento dualista” (ainda sem tradução no Brasil), do eminente cientista espanhol Francisco Rubia, estudioso do cérebro e da fisiologia do sistema nervoso. O subtítulo da obra é por si mesmo um atraente convite: “ideologías, creencias, fanatismo”, um território, por assim dizer, minado, uma vez que se enlaça com temas candentes da contemporaneidade, a exemplo do terrorismo, do populismo, da espiritualidade, dos conflitos religiosos e culturais.
Rubia, de logo, vai ao ponto ao nos dizer que o pensamento dualista, ou binário, é muito característico das ideologias e do fanatismo. Os dualismos permeiam a filosofia e as religiões e não por acaso seduziram inúmeros antropólogos. A hipótese do autor é de que “O pensamento binário ou dualista é a primeira fase do pensamento racional humano”. Um pensamento que vários outros estudiosos também percebem como uma tendência inarredável de nossa humanidade.
Para o psicólogo americano William Uttal, citado pelo autor, o dualismo, como diz num dos seus títulos, é “o pecado original do cognitivismo”. Toda religião, escreve Rubia na esteira de Uttal, “[…] é dualista no sentido de que preconiza âmbitos opostos: alma/corpo, matéria/espírito, natural/sobrenatural”. Como quer que seja, vários neurocientistas e antropólogos constatam o dualismo como uma espécie de mecanismo inato, uma propensão natural da mente. Não obstante isso, Rubia defende que “O pensamento dualista, ou binário, é apenas uma das possibilidades que tem a nossa mente”, afinal “existe toda uma gama de cinza que se refere a um pensamento mais complexo”.
Após passar em revista a literatura filosófica, antropológica e neurocientífica, Rubia centra seu foco nas ideologias, pois é nelas que “O pensamento binário, ou dualista, se manifesta de maneira radical, estabelecendo opostos inconciliáveis como a diferença entre arianos e judeus na ideologia nacional-socialista”. Em alguns casos, os estudiosos mostram como ideologia e fanatismo andam juntos, pois “ideologias conferem segurança, certeza e solidariedade”. Não obstante isso, há como que um lado B das ideologias. Rubia nos enumera algumas de suas mais recorrentes e negativas características, a saber: intransigência, fanatismo, pensamento dogmático alheio à realidade; falsificação da história; cosmovisão fechada, resistente a qualquer inovação; descrição de um futuro idílico, vitimismo. Muitos autores estão convencidos de que “[…] a ideologia representa uma regressão a um estágio anterior do desenvolvimento de nossa mente”. Essa regressão, adverte Rubia, “[…] manifesta a fragilidade de nosso eu, uma aquisição recente na evolução e que ante graves dificuldades retroage a estágios antigos de seu desenvolvimento”.
No tocante às crenças, vale, por momentosa, a curiosa aproximação analógica com os vírus: “Herdamos nossas crenças da família, da comunidade, da cultura em que estamos imersos. Muitos autores as compararam aos vírus, que parasitam nossa mente e, em algumas ocasiões, fazem com que adoeçamos. Nesse sentido, podem ser muito prejudiciais e ter a tendência de estender-se a outros seres humanos, como fazem os vírus. O problema é que muitas delas as adquirimos quando ainda não somos conscientes ou capazes de valorá-las e admiti-las ou rechaçá-las”. Não por acaso, William James as encarava como vinculadas às emoções. A título de curiosidade, Rubia cita o livro “The believing brain” (“O cérebro crente”), de Michael Shermert, onde é citada uma pesquisa com 2.303 adultos norte-americanos em que se perguntava se acreditavam ou não numa série de tópicos que ia de Deus, de céu, de milagres e anjos a outros itens como a Teoria da Evolução, bruxas, astrologia e reencarnação. Descobria-se, assim, que em 2009, nos EUA, as pessoas acreditavam mais em anjos e demônio do que na Teoria da Evolução!… (Em que as pessoas acreditarão no Brasil de hoje?)
Finalmente, o livro de Rubia termina com inúmeras considerações sobre o fanatismo e o terrorismo, citando exemplos históricos que sempre nos surpreendem e chocam. O fanatismo, segundo ele, além de contagioso, pode ser induzido como na Alemanha nazista. Uma citação de George Orwell, lembrada por Rubia, nos faz estremecer em vista do contexto de polarização e radicalismo político do Brasil atual. Diz o famoso autor britânico: “O socialismo e o capitalismo prometeram às pessoas bons tempos. Hitler lhes ofereceu a luta, o perigo e a morte, e o resultado foi que toda uma nação caiu a seus pés”. (Cuidado, brasileiros!)
Ao concluir, o autor parece se inspirar em Freud para uma exortação final: “A superação dos contrários conduz à criatividade. Em vez da regressão ao pensamento onírico, no qual os contrários desaparecem podendo estar juntos sem criar conflito, no pensamento criativo se produz o mesmo fenômeno, mas de maneira consciente”. Talvez o inverso também seja verdadeiro e nos ajude a superar as polarizações: a criatividade conduz à superação dos contrários…
Mais do que nunca, precisamos de criatividade para vencer o simplismo do pensamento binário. O livro de Rubia nos ajuda a ver isso com ciência e clareza.
OPORTUNO E INSTRUTIVO!
Concordo com Clemente de que é um artigo oportuno. Só que os fanáticos mais extremados, esses que vejo nas redes sociais espalhando chavões broncos, não vão ler nem Paulo Gustavo, quanto mais Francisco Rubia. O que fazer?