Se a política democrática e a forma constitucional moderna exigem diálogo e construção de consensos mínimos, então o primeiro debate Trump-Biden, realizado na terça-feira 29 de setembro, foi uma completa negação. Deixou a desejar em tudo o que se pode esperar dos dois candidatos à Presidência da principal potência mundial.

O prejuízo foi grande para a legitimação da disputa eleitoral. A instituição norte-americana do debate presidencial também saiu chamuscada, na medida em que nem os candidatos mostraram grandeza e honra ao cargo que disputam, nem o eleitor conseguiu encontrar, na cacofonia que se teve no palco de Cleveland, algum esclarecimento ou alguma sinalização do que fará o próximo ocupante da Casa Branca.

Donald Trump conseguiu criar caos e travar o debate. Mas sua performance não foi perfeita. Pode ter entusiasmado as bases fanáticas e ardorosas do trumpismo, mas não deve ter sensibilizado os indecisos. O atual presidente esteve alguns pontos acima do razoável. Nervoso, com baixo poder de articulação e nenhuma preocupação programática, limitou-se a impedir o candidato democrata de argumentar. Muito pouco para quem busca a reeleição e se vangloria de ter as melhores ideias para tornar a América grande de novo.

Trump se comportou como uma besta-fera desenjaulada. Para bloquear as críticas e propostas de Biden, transgrediu abertamente as normas e o respeito. Nada respondeu, nem anunciou. Suas constantes interrupções fizeram com que Biden se atrapalhasse e terminasse por aderir aos insultos e provocações.

A atitude de Trump foi tão inescrupulosa e agressiva que forçou a Comissão de Debates Presidenciais a estudar uma alteração no formato dos próximos debates e até mesmo a substituição do moderador, Chris Wallace, alvo de muitas críticas por não ter conseguido manter o nível da primeira discussão. Alguns democratas chegaram a dizer que Biden não deveria se comprometer a participar dos demais debates.

O debate do dia 29/9 foi muito ruim. Nada apresentou de substantivo e trouxe pouquíssimos elementos programáticos. Um cenário patético, com dois malucos se agredindo abertamente. Serviu, no entanto, para mostrar que há um abismo político, ético e moral separando os dois candidatos.

Insultos e agressões

Ao passo que Trump entrou para bater com fúria e sem cessar, Biden jogou para não perder. Tentou mostrar moderação e falar com o povo, o eleitor médio, o cidadão comum. A postura do candidato democrata, ainda que com escorregões, fez diferença num debate gritado e sem sequência lógica.  Ficaram a ressoar no palco seus apartes chamando Trump de palhaço, idiota, mentiroso e racista.  Uma hora e meia em que os espectadores assistiram a um festival de insultos e agressões. Um retrato melancólico da situação política atual

Políticos da escola de Trump estão corroendo a democracia e confundindo os democratas, que são levados a abandonar a argumentação reflexiva em troca de uma agressividade com sinal oposto. A ideia de que é preciso “partir prá cima”, agredir sem pena nem dó porque seria essa a linguagem do convencimento, passou a ser defendida por muita gente qualificada.

Agressividade não significa firmeza de princípios e ideias. Pode ser indispensável que em alguns momentos alguém bata na mesa e levante a voz, mas o fator diferencial da postura democrática continua a ser o substantivo, não o adjetivo.

Na base desta inflexão está a perda de importância das ideias e das ideologias, no lugar das quais entraram em cena as fake news, a pós-verdade, o ódio, o ressentimento, a raiva, a polarização visceral em torno de crenças ingênuas. Cada turma carrega suas verdades, que não se associam a visões da realidade ou a convicções doutrinárias, mas sim a formulações empacotadas para “causar”. É outra modalidade de política, mais mesquinha, mais vazia, sem grandeza, com falas modeladas para impressionar.

Estigmas

Políticos como Trump são como aqueles pugilistas que enfiam o dedo nos olhos do adversário, batem onde não pode, desrespeitam o juiz, partem para cima depois que o gongo soa. É narcisista, autoritário, rude, mal-educado, parte de uma escola que se espalhou pelo mundo nos últimos anos e emporcalha a democracia.

São políticos que se dedicam a confundir, não a esclarecer. Posam de perseguidos por conspirações da esquerda, dos globalistas e dos ambientalistas, que misturam numa sopa indigesta. Querem se apresentar como defensores “da lei e da ordem”, paradoxalmente afirmada contra o “sistema”. Neles não há sinceridade, a arrogância sai por todos os poros.

O plano é colar nos adversários estigmas que possam assustar e inflamar os eleitores. Para Trump, por exemplo, Biden não passaria de um “boneco da esquerda radical”, um político “fraco” e sem liderança. Uma manobra para reforçar o medo, o ressentimento e a insegurança daqueles que se sentem frustrados com as mudanças da vida.

Biden é uma pedra no sapato de Trump. Branco, moderado, católico, de uma família de trabalhadores da Pensilvânia, tem larga experiência política e uma história pessoal marcada por dramas e tragédias. Difícil que possa assustar o eleitor norte-americano.

Para vencê-lo, Trump recorre à caricatura e à ofensa. E tenta, numa operação próxima do desespero, retirar legitimidade das eleições, pondo sob suspeita a lisura dos votos pelo correio.

Faltando trinta dias para as eleições de 3 de novembro, muita coisa pode acontecer. Trump não mudará, Joe Biden e sua vice Kamala Harris terão pela frente o desafio de qualificar o processo eleitoral e manter a política no patamar civilizado, afastando-a do precipício.