Em artigo publicado nesta Revista Será? intitulado “A idade das palavras” (16 de outubro), Cristovam Buarque se inscreve no debate iniciado na revista pelo ensaio de Elimar Nascimento, “Algumas notas sobre a origem do Decrescimento” em 2 de outubro, criticado no meu artigo intitulado “Decrescimento? O que é isso?” (9 de outubro). No seu artigo, Cristovam procura se diferenciar de nós dois, embora mostrando simpatia pelo conceito de decrescimento, afirmando que ambos, Elimar e eu, não conseguimos nos livrar do economicismo.
Ele comete um grave equívoco e uma grande injustiça quando reduz a minha defesa do conceito de desenvolvimento sustentável ao terreno restrito da economia. Frente ao conceito de decrescimento, este sim enviesado pela economia, não defendo o crescimento da economia, mas entendo que é possível (e até desejável em grande parte do planeta) uma elevação da renda (vale dizer do PIB) sem, necessariamente, destruir o meio ambiente e facilitando os resultados sociais, além de tornar possível a ampliação da receita pública necessária para o aumento dos investimentos públicos que melhoram a qualidade de vida. Para isso, da perspectiva do desenvolvimento sustentável, é necessário adequar a economia às condições de conservação e reprodução do meio ambiente o que remete, em última instância, a mudanças na estrutura e no modelo produtivo, incluindo a reorientação da matriz energética.
O Acordo do Clima define metas de redução de emissão de gases efeito estufa, para os signatários, proporcionais ao volume emitido por cada um dos países. Aqueles países que não conseguirem reestruturar a sua economia ou incorporar inovações que reduzam as emissões terão que dar um freio na economia, se estiverem dispostos a cumprir a meta. Ao contrário, as nações que realizarem uma mudança no modelo econômico e produtivo e no padrão tecnológico poderão cumprir as metas, mesmo continuando com o crescimento da economia. Vale repetir que, de 1990 a 2018, a União Europeia reduziu em 23% as emissões de gases de efeito estufa ao mesmo tempo que teve um crescimento de 61% do PIB. Este resultado foi possível, principalmente, pela ampliação das fontes renováveis na matriz energética da Europa; em 2017, a geração limpa de eletricidade (eólica, solar e da biomassa) superou a termoelétrica de carvão (The European Power Sector in 2017 – The Tipping Point). Por isso, Hans Bruyninckx, diretor da Agência Europeia do Meio Ambiente afirma, com razão, que a “UE demonstrou que não há nenhum conflito entre uma economia que cresce e a redução de emissões de gases de efeito estufa”.
A polêmica com Elimar não pode ser jogada na vala comum do economicismo porque a variável econômica entra de forma muito diferente nos conceitos concorrentes, decrescimento e desenvolvimento sustentável. Para distinguir as visões, a controvérsia seria mais bem formulada da seguinte maneira: se for alcançado um decrescimento do PIB, não será necessário mudar o padrão de produção para caber nos limites da natureza, uma vez que a redução do produto diminui a pressão antrópica. Ao contrário, a mudança do padrão de organização da produção e das fontes energéticas pode até permitir um crescimento do PIB sem destruir o meio ambiente. Para não falar do lado positivo deste crescimento na elevação da renda da população, com efeito potencial direto na melhoria da qualidade de vida e no aumento da receita pública.
Quando Cristovam diz que “precisamos usar a economia para indicar apenas a parte da racionalidade física de um processo que é muito mais amplo, social e natural, com propósitos morais” ele está falando em desenvolvimento sustentável, por mais que não goste do nome. Ninguém pode discordar que o objetivo último de qualquer sociedade é, como ele defende, buscar a “melhoria no ‘bem estar’ e na ‘felicidade’, ‘conforto’, ‘alegria’, ‘esperança’”, objetivos desejados por todos. O problema é como podem ser alcançados esses objetivos. As pessoas precisam ter a satisfação das necessidades básicas, que dependem de renda, acesso a bens e serviços que exigem investimentos públicos.
Não dá para imaginar alguém entrando nas favelas e visitando as palafitas do Recife com mensagens animadores: “Alegria pessoal! Por que essa desesperança? A vida é bela e temos que ser felizes”? Ironia à parte, na maioria dos países, a “melhoria do bem estar” (condição necessária, mas não suficiente para a felicidade e a esperança) depende de volumes significativos de investimentos públicos na educação e no saneamento, para fazer a “revolução na educação” proposta por Cristovam. E onde o Estado vai buscar estes recursos sem uma elevação da renda geral que amplie a arrecadação? Em países como o Brasil, com uma elevada carga tributária, nem dá para se dizer que vai tirar dos ricos e reduzir os privilégios da minoria de alta renda (o seria justo, mas deveria ser acompanhado da redução dos impostos de outros segmentos da sociedade, para não aumentar a já pesada carga tributária).
No final das contas, as teses de Cristovam convergem totalmente com o conceito de desenvolvimento sustentável, por mais que ele insista na criação de novos conceitos para dizer a mesma coisa. Desenvolvimento sustentável não é um conceito velho, tem os mesmos 30 anos da proposta de “econologia” feita por Cristovam, e um pouco menos que o conceito de “ecodesenvolvimento” de Ignacy Sachs. Com uma diferença enorme: já está amplamente consolidado e sacramentado no mundo, e internalizado nos debates públicos sobre o futuro. Além disso, transmite a mensagem clara da necessidade de articulação e equilíbrio das dimensões (e objetivos) sociais, ambientais e econômicas.
Este artigo do Sergio merece uma resposta ampla, pq o debate está ficando bom e é oportuno. Vou prepara-la. Mas nao queria deixar de registrar que gostei divergindo. Embora ele usa um argumento ruim ao lembrar como reagiriam os moradores de uma favela se um candidato propusesse reduzir producao de feijao. Nem o decrescimento propoe reduzir comida, talvez até alcool para automovel, nem os moradores aceitariam a reducao na producao de automovel e bens de luxo. Eles vao se perguntar: “ por que agora, quando estava chegando a minha vez?” Da mesma forma que Bolsonaro pergunta ã Europa, por que querem parar nossas queimadas, se voces ja queimaram as de vocês. Lembro ao Sergio, que os morasores da favela têm tambem razao de se oporem à responsabilidade ecologica, tanto quanto à responsabilidade fiscal. A inflacao existe nas duas dimensoes, embora seus edeitos cheguem com velocidades diferentes. Nosso debate é conceitual, politicamente acho que vamos perder todos: o mundo continua para a opcao inflacionaria, monetaria ou ecologica, e para seus respectivos colapsos. Cristovam
Cristovam
Acredito que o problema todo vem de uma visão da economia identificada só com o mercado. Precisamos, ao contrário, alargar o campo econômico, integrando e desenvolvendo outros aspectos da economia (solidária, informal, não lucrativa, etc.). A economia, « cuidar da casa », organizar a atividade humana de modo a proporcionar o bem-estar do homem, é bem mais abrangente do que esta visão dominante nos nossos dias. « Fora do mercado não salvação » – há sim. Eu diria que é exatamente o contrário. O mercado, tal como ele funciona hoje, é que é o problema! Precisamos submeter o mercado. (Veja-se o segundo capítulo [« A atuação do Estado no domínio econômica : as ideologias »] do livro de Lucas Noura Guimarães Regulação da exploração da eletricidade : compatibilidade com as leis da natureza e com a ordem econômica constitucional, Curitiba, CRV, 2013, em que o autor faz um histórico da formação do mercado moderno.)
O comentário do Ciro me fez lembrar do livro Organizado por Manuel Castells – Outra economia é possíve, assim como do segundo manifesto do onvivialismo recém publicado. Economia é cultura.
O conceito abrangente de desenvolvimento sustentável está muito bem explicado em todos os seus componentes na Agenda 21- Programa de Ação para o Desenvolvimento Sustentável, que tem o subtítulo “Texto final dos acordos negociados por governos na Conferência das Nações Unidas para Meio Ambiente e Desenvolvimento de 2 a 14 de junho de 1992, no Rio de Janeiro, Brasil”. Essa a leitura que recomendo. É um compromisso internacional que está sendo honrado (a despeito de alguns relutantes) e há esforços em vários países no sentido de sua implementação. É difícil educar os povos, em democracia, para as mudanças comportamentais que ela implica. Aliás, há na Agenda o item 4, “Mudança nos Padrões de Consumo”. Esse item é um dentre 8 itens que compõem a Seção 1, “Dimensões Sociais e Econômicas”. Implica na realidade em “Mudanças nos Padrões de Consumo e Produção”. A rigor, o palavreado sobre “decrescimento” apenas achou uma “novaa” maneira de maneira de falar em desigualdade no consumo ignorando a discussão de décadas sobre padrões de consumo, ignora todos os esforços já feitos no mundo tentando mudar padrões de consumo (no mínimo não jogar plástico na beira-mar ou usar mais bicicleta e menos gasolina, não desperdiçar água, conter o desmatamento, incentivar o reflorestamento , etc. etc.), ignora o quanto é duro mudar padrões de consumo, espalha a ilusão de que o Estado forte protegerá a natureza que o mercado está destruindo, ignora o quanto as cadeias de produção do mundo corporativo (sobretudo a partir da Europa) está incorporando o esforço contra a mudança climática e pela redução das emissões de CO2. Apresenta como novidade algo que só aparece como tal porque ignora o trabalho anterior, parece que jamais leram nem a Agenda 21 e muito menos a multidão de acordos multilaterais ambientais já acordados e o quanto é duro implementá-los. Ignora até mesmo que a preservação do planeta só é possível via cooperação internacional. De repente despertaram para a importância da preservação da natureza e apresentam um emaranhado conceitual que merece sequer rotulo de utopia, é distopia mesmo, mais ainda se acha que governos sem mercados conseguirão preservar o meio ambiente. Terão notado que 96% das empresas de saneamento básico no Brasil são estatais? E haja poluição das águas. Claro que se eliminamos os humanos, que também fazem parte do reino animal (ou não?) o resto da natureza fica mais preservado (se é que esse contrafactual é possível de demonstrar, como parece pretender o pessoal do “decrescimento”). Algum dos partidários do “decrescimento” acaso sabe que foi exatamente nos antigos países comunistas (ou seja, com total controle do estado) que a falta de cuidado com o meio ambiente foi mais impressionante? Os esforços da China e seu regime peculiar (onde, aliás, o mercado ajuda um bocado a vender painéis fotovoltaicos) fazem parte de outra era, posterior à Cúpula da Terra de 1992, em que passou a existir uma questão de cumprimento de acordos internacionais, assunto que esse pessoal do “decrescimento” não inclui em suas considerações. Aliás, sequer inclui em suas considerações as ciências naturais, estas sim, a nos informar quais são as principais consequências do descaso ambiental. (Sim, sei que o comentário está comprido demais, mas é para concordar com Sérgio C. Buarque e descartar “novidades” que apenas causam ruído e notoriedade para seus autores.)
Valeu, Helga!
Assino em baixo!