O Senado Federal tem se destacado, nos últimos tempos, pela inoperância situacionista. Sentado sobre si mesmo, limita-se a aprovar as indicações feitas pelo presidente da República, como aconteceu na semana de 21 de outubro, quando referendou nomes para várias agências reguladoras (como a estratégica ANVISA) e sabatinou o desembargador Kassio Marques para o STF, posteriormente aprovado pelo plenário do órgão. Teve, também, de lidar com as cuecas de Chico Rodrigues (DEM-RR), flagrado semana passada com R$ 33 mil nas partes íntimas.
Não houve surpresas. O Senado é hoje terrivelmente situacionista, sua maioria ou está composta com o governo ou não quer criar confusão. A oposição tem pouco peso e quase nenhuma voz ativa. São cerca de 20 senadores entre 81, número insuficiente até para jogar o jogo, ainda mais porque não são todos os oposicionistas que fazem oposição. A situação passa invariavelmente como um trator, comandada por MDB, Podemos e PSD, partidos integrados por governistas de raiz. Sem contar, claro, o DEM.
Na sabatina feita pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), o indicado Kassio Marques se derramou em declarações oportunistas: contou de sua formação religiosa, falou em Deus, em educação moral e cívica, em “sonho brasileiro” e chegou a dizer que sua indicação era no fundo “um chamado”. Recitou Isaías, versículo 12: “Eis o Deus meu salvador, eu confio e nada temo. O senhor é minha força, meu louvor e salvação. Com alegria bebereis do manancial da salvação”.
Apresentou-se como um “garantista” que combate à corrupção como “ideário essencial para que se consolide a democracia no país”. Fez um discurso que agradou até mesmo a bancada do PT, hoje em verdadeira cruzada contra a Lava Jato e Sérgio Moro. Notícias dão conta de que os 6 senadores petistas saíram satisfeitos de um jantar que ofereceram a Kassio no início da semana. Na sabatina, o líder do partido, Rogério Carvalho, não poupou elogios ao indicado, a quem parabenizou “pelo currículo”.
Rapapés e sabujices
O relator do caso na CCJ, Eduardo Braga (MDB-AM), já havia deixado claro o tom que deveria ser adotado na arguição. Não deu bola para os tropeços do desembargador, sobretudo no escamoteamento curricular e no comprovado plágio de textos. Pensa que o falseamento do currículo foi somente “uma confusão semântica”, uma “suposta sobreposição cronológica nos cursos que frequentou”. Falou isso com desfaçatez, como se se tratasse de algo menor, sem importância. Reputação ilibada é expressão que não integra o vocabulário da maioria da casa.
Braga, que é do MDB, mostra bem o estilo que hoje prevalece nesse que foi o principal partido da democratização. Sombra apagada de um passado heroico.
Na CCJ, foi uma lavada: 22 votos a favor, 5 contra, depois de dez horas de uma sessão repleta de rapapés desajeitados, em que até os partidos de oposição saíram para dançar, puxados pelo ora redivivo Renan Calheiros, para quem Kassio Marques “é homem preparado, culto, dedicado”, dono de “espetacular cultura geral e formação jurídica inquestionável”. Só faltaram lágrimas.
Exceções ficaram por conta por senadores do Cidadania, Alessandro Vieira (SE ) e Jorge Kajuru (GO). O primeiro criou um climão ao indagar sobre a função que a mulher do indicado exerce num gabinete do Congresso. Kajuru, por sua vez, não aliviou: “a sabatina fica patética pelo festival de sabujices”. Ninguém ligou. Presidente da CCJ, a senadora Simone Tebet ainda teve tempo de celebrar a sabatina e o rigor dos questionamentos feitos pelos senadores.
Ao final da sessão, o plenário foi reunido e aprovou rapidamente a indicação: 57 votos favoráveis, 10 contrários e uma abstenção.
Falta de eixo
Além do baixo nível, também chama atenção que o Senado, institucionalmente definido como “câmara alta” imbuída da função de moderar os arroubos da Câmara e agregar valor ao processo legislativo, hoje rasteja diante do Executivo. Não tem eixo, só apetites. Seu presidente, Davi Alcolumbre (DEM-AP) busca com sofreguidão, em manobras de bastidores, burlar a legislação para obter um segundo mandato. Era um ilustre desconhecido antes de vencer Renan Calheiros em 2019. Renan, agora, é seu aliado, além de estar na linha de frente do apoio a Bolsonaro.
A casa, que já foi de Rui Barbosa, Paulo Brossard e Teotônio Vilela, entre outras sumidades, arrasta-se na indigência política e moral. Vive dias inglórios. Seu governismo é constrangedor, praticado em nome de uma serenidade que não disfarça a submissão. Tudo indica que a união de interesses por ali se dá em função da comum oposição à Lava Jato. O situacionismo é tão gritante que destoa da Câmara dos Deputados, cuja função reguladora forçou Bolsonaro a virar a casaca e a se converter à “velha política”.
O problema maior do Senado é a lama que escorre do caso Chico Rodrigues. Ele está sendo simplesmente acusado pela PF de chefiar um esquema de desvios de recursos da Saúde em Roraima, uma espécie de ‘’gestor paralelo’’ da Secretaria de Saúde do Estado. O dinheiro na cueca é o menor de seus crimes. Quando o flagrante apareceu, panos quentes, de tipo corporativo, foram imediatamente acionados. O STF se envolveu, pediu o afastamento do senador, houve certo alvoroço, mas pouca indignação diante da gravidade do ato corrupto de Rodrigues. O senador dobrou-se às pressões e se licenciou, levando o STF a retirar o caso da pauta.
Chico Rodrigues aceitou a licença, mas não perdeu os privilégios. Manterá o apartamento funcional e o plano de saúde oferecido pelo Congresso. Regalias que serão estendidas a seu suplemente, que não por acaso é seu filho, Pedro. Ficará tudo em família. E os gastos com benefícios dobrarão.
O Poder Legislativo é vital na democracia. Nos dias tormentosos em que estamos, sua movimentação tem sido um anteparo aos apetites autoritários do Executivo. Encontra-se agora paralisado pelas eleições municipais e pelo temor de acirrar ainda mais os ânimos, deixando o presidente de mãos livres para debochar da opinião pública, intoxicar a população, fingir que governa e fazer campanha pela reeleição.
O Congresso pode e precisa fazer mais, em termos institucionais e no plano político geral. Somente assim ficará alinhado de fato à democracia. E os indícios são de que essa tarefa terá de partir da Câmara dos Deputados.
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