A educação tem tido cada dia menos referências de qualidade que nos permitam nos desenvolver como País. As referências objetivas dos indicadores de desempenho da educação básica (Ineb) se mantêm abaixo dos 5 pontos, não atingindo nem a meta minimalista fixada para 2019: 4,9 no fundamental e 4,2 no ensino médio. Em outras palavras, somos um país de analfabetos funcionais (30%), algo muito mais grave do que os 10% de analfabetos entre pessoas entre 15 e 65 anos. Nesta perspectiva, mesmo aqueles que parecem qualificados para ler e entender o que leram, terminam limitados na sua capacidade crítica, como sujeitos da construção de uma sociedade baseada na racionalidade, na ética e na democracia. Qual a capacidade de ação política desta população dita alfabetizada? Que Pais é esse? Como construir a democracia com um terço da população de analfabetos funcionais? Como nos livrarmos das manipulações de políticos desonestos, a serviço de interesses escusos? Nos dias de hoje só os mitos são capazes de mobilizar e manipular a maioria de nossa população adulta.

As recentes referências aos efeitos desastrosos desses mitos, publicadas por João Rego (http://www.facebook.com/ditos.escritos) nos mostram essa fragilidade “infantil” da nossa gente, alheia à critica racional da qual carece a democracia. Não tenho dúvidas que só uma educação que fosse além do simples mecanismo de escrever e ler palavras e frases, poderá nos levar à construção de sujeitos coletivos, com autonomia e força política, o único caminho para uma sociedade democrática.

Neste quadro, meio aterrador, fiquei me perguntando, onde histórias simples como a minha permitem ganhar consciência política, considerando que minha formação começa numa infância e adolescência vividas no Crato, uma pequena cidade a mais de 500 Km de Fortaleza e de Recife, os principais centros culturais de então? Lembro que aos 12 anos fui estudar no seminário, não por questões religiosas, como pensaram meus pais, mas porque para lá tinham ido todos os meus amigos. Um ano depois desistimos todos, sofridos pela dura disciplina eclesiástica. Em 1954, fiz o “exame de admissão”, um filtro para começar o “ginasial”. Um dia, quando voltava da escola, soube que o Presidente Getúlio Vargas havia se suicidado. Foi a única referência política que tive na minha infância. O poder no Crato eram o Bispo, os médicos e os Coronéis fazendeiros.

Depois do exame de Admissão fui estudar no Colégio Diocesano, onde a questão religiosa se limitava a uma ave maria antes de iniciar cada aula. Acho que foi nesse período que comecei a pensar na vida e no mundo, ainda sem nenhuma conotação política. Éramos uma turma, uma dezena de amigos que, fora das aulas, passávamos os dias conversando sobre tudo, ainda sem ler nada. As fontes eram os filmes, os namoricos, o curso de inglês, as fantasias sobre o mundo.

Lembro que quando estava no primeiro ano ginasial, pensei em ser piloto de avião, possivelmente influenciado pelos filmes de guerra. Fiz uma carta pelo correio para o Marechal Teixeira Lott, então ministro da Guerra, perguntando o que deveria fazer para entrar na escola de cadete da Aeronáutica. Não demorou a resposta, sugerindo fazer um curso de preparação. Fiz, simultaneamente, a quarta série do ginasial em Fortaleza e o curso preparatório de um coronel. Passei, e segui para Barbacena, depois de 2 dias no Rio de Janeiro onde assisti um jogo do Vasco, no Maracanã. Ganhou peso a minha formação.

Nos primeiros dias de aula na Escola de Cadete recebi uma informação que, apesar da excelente prova que fiz, não poderia receber formação de aviador porque era daltônico. Fui desligado. Fiquei muito triste, mesmo depois de ter ouvido na primeira aula uma orientação que ainda hoje afeta minha referência sobre a vida militar: “Superior nunca erra; raramente se engana. …e quando isso acontece, é culpa exclusiva do subordinado.  Me mandaram de volta ao Crato em um avião monomotor igual aos que apareciam nos filmes de guerra. Fiz muito sucesso na minha chegada.

Acho que aí começa uma visão crítica do mundo. Voltei para o Crato, onde reencontrei minha turma e os papos passaram a ser mais consistentes, além dos namoricos, filmes e esportes. Começamos a falar do futuro de cada um, de formas de pensar diferentes, dos modelos que marcaram a vida da região do Cariri cearense, diferenciando os “coronéis”, dos intelectuais; os que se acomodaram, daqueles que desbravaram o mundo ou que, ficando ali se diferenciaram pela honestidade, pela solidariedade. O cotidiano de uma pequena cidade com histórias como a da revolucionária Bárbara de Alencar, Miguel Arraes, Doutor Gesteira e muitos dos nossos professores com quem convivíamos no dia a dia e que ajudaram nossa formação de maneira mais eficiente do que as aulas e os deveres de casa do modelo de ensino atual.

No colegial aprendi mais na relação direta com os meus mestres e seus exemplos de pessoas comprometidas, do que com as aulas de português, matemática, história (eram sempre sobre as histórias locais), de geografia, de ciências, … Ficaram as referências dos mestres, como fortes indicadores de ética e de compromisso social.

O que me preocupa desde sempre, para além dos limites dos modelos pedagógicos e das responsabilidades orçamentárias legalmente estabelecidas, são as desastrosas gestões dos sistemas de educação, agravadas agora diante da grave crise operacional decorrente da pandemia. Pensava-se que tudo mudaria com a reforma do ensino médio, aprovada como medida provisória em 2017 (justificada pela urgência) e ajustada pelo congresso (lei 13.415/2017). Até os dias de hoje nada foi implantado e provavelmente esta lei nunca atingirá seus objetivos. Primeiro, porque não temos infraestrutura adequada, nem docentes qualificados para as mudanças propostas; depois,  porque apesar da urgência da medida provisória, a educação nunca foi prioridade entre nós, particularmente em governos como o atual.

Mesmo considerando as mudanças curriculares propostas na nova lei, inclusive aumentando em 25% o número de horas aula, qualquer reforma do ensino deveria mudar o lugar da educação na hierarquia de prioridades. Em 2003, Cristovam Buarque, como Ministro da Educação, apresentou uma proposta revolucionária de federalização do ensino até o nível médio, com a mobilização de recursos públicos,  com foco na pedagogia e no estabelecimento de padrões para a qualificação e remuneração das carreiras docentes; sempre baseadas em sistemáticas avaliações do desempenho. Esse projeto não foi aceito e, nas vésperas de uma conferência internacional, na India, onde representaria o Brasil, ele que já se encontrava no exterior, foi demitido do Ministério, pelo então Presidente Lula; por telefone.

Para avaliar a situação nos dias de hoje, há que se considerar que o vexame das nomeações do ministro da educação no governo Bolsonaro: um primeiro (Ricardo Vélez) ficou apenas 3 meses, depois de ter autorizado professores a filmar os estudantes recitando a campanha eleitoral (Brasil acima de tudo, Deus acima de todos); o segundo (Abraham Weintraub) foi praticamente expulso pela estupidez de suas falas públicas contra o STF; o terceiro (Carlos Decotelli) foi demitido antes de tomar posse por falsas informações no currículo que apresentou ao congresso; o atual (Milton Ribeiro) é teólogo e pastor presbiteriano e tem detratado as universidades como um universo existencialista patrocinador da ideia de sexo ilimitado. Investimento em educação, nenhum!

O mais grave da situação atual é a crise funcional que afeta, tanto as escolas públicas, como as privadas. Há mais de 7 meses que o ensino nacional se encontra praticamente paralisado. Mesmo as universidades estão buscando uma saída, sem sucesso, para garantir o ano escolar. O ensino básico, por outro lado, depois de tentativas infundadas de estabelecer um modelo de ensino pela internet, está praticamente paralisado, seja pela falta de definições sobre os modelos adequados de tecnologia digitais, seja pela falta de acesso da imensa maioria dos estudantes aos meios necessários para acompanhar. As tentativas de retorno às aulas presenciais têm sido frustradas,seja pela falta de condições sanitárias da maioria das escolas, com a resistência dos professores e das próprias famílias dos estudantes; seja pelas dificuldades de complementação entre aulas presenciais e aulas digitais.

Estamos diante de um quadro catastrófico, onde uma geração de crianças e jovens está seriamente ameaçada de perder um ano na construção de suas vidas, pela incoerência política dos governantes, mas também, é preciso dizer, pela falta de organização política de uma sociedade que tem se mantido pendular, entre mitos manipuladores e uma geração de políticos pouco dignos dos cargos que ocupam.

Se não bastasse a deformação do quadro atual, não se pode desconsiderar que esse modelo de “líderes” deixa referências inconsequentes para a maioria da população que termina por absorver comportamentos vantajosos em detrimento da ética e dos direitos democráticos dos demais. É essa a orientação que termina ficando para nossa população de analfabetos funcionais. A falta de educação para a formação de sujeitos sociais consequentes é o maior legado da manipulação política, nos governos autoritários e populistas. A falta de referências em pessoas públicas comprometidas com a ética e a democracia termina por sepultar uma sociedade que se deteriora a cada dia.

Lembro finalmente, que foi no Crato, fora da sala de aula, que aprendi sobre ética e democracia, tanto pelos exemplos de vida que conheci, como pelo que se falava no dia a dia respeitosamente ou entre piadas. Uma das estórias clássicas daquela época aconteceu no enterro do “Seu” Jose Honor, comerciante e um dos homens mais respeitados da região. No cortejo imenso de gente que acompanhava o caixão pelas ruas da cidade, um dos homens mais ricos perguntou a um funcionário público que acompanhava o cortejo: Chico, tu achas que no meu enterro vai ter tanta gente assim? Resposta;” oxente, coronel, só se tu for enterrado vivo. Eis uma aula de democracia, nas ruas, com o viés do humor. Talvez esse seja o maior trunfo que ainda temos para restabelecer a democracia. O dinheiro na cueca que o diga.