Charge ” A Revolta da Vacina” – 1904.

 

Em certos acontecimentos, que aparentemente repetem um passado mais grandioso, costuma-se lembrar de uma frase de Marx do seu artigo “Dezoito Brumário de Louis Bonaparte” na França de 1852. Nesse ano a classe dominante francesa  punha no poder um paspalho cuja única virtude era ter herdado o sobrenome do seu tio, que se auto nomeou imperador em 1804. Napoleão Bonaparte depois de sua derrota pelos russos perdeu o poder, mas ainda era estimado pela lembrança popular. Literalmente o texto diz que “A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.” Mais do que tudo é uma frase de efeito, pois não tem base científica nenhuma.

Mas não é fácil deixar de lembrar dessa frase em face das ridículas manifestações do dia primeiro de novembro contra a obrigatoriedade da vacina. É que vem à mente a que é conhecida como a Revolta da Vacina, que de fato foi um motim popular ocorrido entre 10 e 16 de novembro de 1904 na cidade do Rio de Janeiro, então capital do nosso país.

A  “Revolta” teve uma participação significativa e durou quase uma semana. Ela foi deflagrada quando, sem nenhuma informação prévia, o governo autoritário passou a invadir as casas e usar a força para vacinar. E essa agressão se deu em um ambiente de grande insatisfação com os serviços públicos em geral. Tanto é assim que o próprio Presidente Rodrigues Alves comandou a seguir um conjunto de reformas urbanas e sanitárias que mudaram a cara do Rio.

As atuais rarefeitas manifestações, que morreram no dia que nasceram,  além da vacina só tinham mais um tema: palavrões contra o Governador.

O importante é entender que nesse mais que um século  que passou desde as multidões de 1904 aos gatos pingados de 2020, a expectativa de vida mais que dobrou. e centenas de milhões de vidas foram salvas graças, principalmente, às vacinas.

Dráuzio Varela, sem dúvida um dos mais respeitados médicos em saúde pública do país, considera os movimentos e declarações anti-vacina como criminosas. É acompanhado nas suas críticas pelas autoridades médicas, fora aquelas que de fato nem autoridade tem pois nem médicos são.

Mas nossos negacionistas, a começar pelo Presidente, agora ruminando os possíveis resultados das eleições americanas, pouco lá se importam com a opinião dos médicos. Tivemos 2 ministros médicos ambos a favor da vacina obrigatória. Os negacionistas que negam o direito e obrigatoriedade da vacina não falam contra usando argumentos médicos; esbravejam contra a vacina como se fosse uma questão de liberdade, uma visão liberal.

O ideário liberal, até o mais radical, tem como base um preceito simples e claro: minha liberdade vai até onde começa a liberdade do outro; significa que posso fazer o que eu bem entender, mas não aquilo que afete o outro. Isso é claramente colocado pelo mais importante filósofo liberal americano John Rawls. Mais recentemente um grande defensor de Rawls, que é Michael Sandel, escreveu um best-seller intitulado “Justiça” (Civilização Brasileira, 2009) que dá exemplos até absurdos do que você pode fazer, sempre que você não afete seu semelhante. Enfim, posso até não fazer uma transfusão que salvaria minha vida, mas tenho que tomar a vacina, pois sem ela o outro pode morrer. No Brasil temos o interessante livro do Gustavo Binenbojm, que se notabilizou ao ganhar no Supremo uma causa contra Roberto Carlos e outros famosos que queriam que as biografias fossem previamente autorizadas, ou seja, censuradas. No seu interessante livrinho “Liberdade Igual” na página 44 diz “Sobressai aqui a importância do princípio da soberania do indivíduo sobre sua vida, seu corpo e seu destino, desde que informado dos riscos de sua escolha e desde que, no exercício de sua liberdade, não cause dano a outro.”

O Rodrigo Maia ficou no muro ao estilo de meias palavras do Papa Francisco: “Cada um pode ter sua opinião, mas a população brasileira vai entender que é fundamental que todos tomem a vacina para que assim realmente erradicar o vírus.” Mas meio que desceu do muro quando diz que poderá criar restrições àqueles que não tomarem a vacina. É como aquela mãe que diz: Filho, você faz o que você quiser, mas se me desobedecer fica de castigo.