Demência – autor desconhecido.

 

Os negacionistas da ciência, aí incluídos evidentemente os que formam o grupo antivacina, são ingênuos. Falta-lhes não só conhecimento histórico, falta-lhes imaginação, sobra-lhes uma excessiva fé em suas crenças infundadas. Preferem se embriagar de irracionalidade. Descartes e sua dúvida são para eles puras abstrações. Todavia, não são todos, como às vezes supomos, simplesmente ignorantes. Muitos não passam de fanáticos. Você os encontrará entre gente bem informada e bem escolarizada. Você os encontrará não só no Brasil e em países subdesenvolvidos, mas também naqueles que costumamos admirar por sua cultura e seu desenvolvimento: uma Alemanha, uma França, uma Inglaterra. Você os encontrará no prédio em que mora, cruzará com eles no trabalho, nos clubes e nas igrejas.

O apelo às emoções sempre foi político e usado pela política. Hoje, a própria neurociência confirma o que muitos pensadores já haviam percebido: essa prevalência das emoções. O que atualmente é tão bem explorado pelos populistas. Debatendo-se em suas emoções primitivas, as pessoas não imaginam o quanto estão cercadas de ciência, inclusive nas menores e mais insuspeitas coisas do seu cotidiano. A levar a sério e às últimas consequências seu negacionismo, bem que poderíamos lhes dizer: façam cirurgia sem anestesia, não tomem quaisquer tipo de remédio, não andem de avião, larguem o celular, etc. Por favor, levem uma vida de primitivos, mais condizente com a massa cinzenta de seus cérebros ou de seus mitos.

Em seu livro “Marcel Proust à la recherche des sciences” (“Marcel Proust em busca das ciências”, sem tradução no Brasil, o físico francês François Vannucci nos chama a atenção para um paradoxo vivido pela sociedade contemporânea: de um lado, “[…] a física se torna de mais a mais presente na vida de todos os dias, graças aos numerosos progressos tecnológicos”, com o público utilizando-os de forma amigável; de outro lado, esse mesmo público vivendo “[…] sem nada conhecer da maneira como [aparelhos e máquinas] funcionam”. Há um fosso entre a ciência e a compreensão do público. Mas — diz ele —” um mínimo de cultura científica oferece as chaves para se compreender o mundo no qual vivemos”. Criticando a própria classe dos cientistas, sempre vistos como “seres frios” e “pouco engajados nos assuntos da cidade”, Vannucci nos lembra uma informação histórica curiosa e frequentemente esquecida e que aqui vem muito a propósito: a de que por ocasião da Revolução Francesa uma “[…] grande parte dos membros do Parlamento então eleitos pertenciam ao meio científico […]”. De fato, reconhece ele, a comunicação entre os cientistas e a sociedade deixa muito a desejar. Eis um ponto, a nosso ver, que propicia o advento dos negacionistas. É preciso que essa comunicação melhore após a pandemia.

Outro ponto que alimenta o negacionismo e a indiferença de muita gente tem a ver com o que Yascha Mounk, em seu livro “O povo contra a democracia”, observa sobre o desencanto dos jovens com relação à democracia. Daí ele lançar a hipótese, e cremos que acertada, de que os jovens “têm pouca noção de como seria viver num sistema político diferente”. Eles nada sofreram de perto com relação  ao fascismo, à Guerra Fria, etc. “Para eles, diz Mounk, a questão da importância  de viver numa democracia é bem mais abstrata”. Da mesma forma, muita gente negacionista parece encarar o passado de forma “abstrata”, esquecendo, no caso dos antivacina, os horrores da varíola, da poliomielite, da tuberculose. Negam o passado histórico, apagam-no, são-lhe indiferentes. Mas essas doenças foram exterminadas graças às vacinas e graças ao esforço dos cientistas. São, além de tudo, pessoas ingratas, cospem no prato tranquilo e saudável em que estão comendo! Desprezam a história e as conquistas que, a duras penas, a ciência nos foi oferecendo e incorporando ao nosso cotidiano.

Em busca de um mundo insular, miticamente puro, os negacionistas não ligam os pontos: ao negarem história e ciência, autossugestionam-se com a própria preguiça mental. Embebidos politicamente de emoções negativas, mal sabem que com isso podem estar se punindo a si mesmos e aos seus.

Muitos negacionistas lembram a atitude irracional de Françoise, a empregada da família do narrador de “Em busca do tempo perdido”, tão bem imortalizada pela pena de Proust.  Françoise, em hipótese alguma, queria usar o telefone, àquela altura recém-inventado, e sempre achava um meio de fugir se alguém queria lhe ensinar a usá-lo, “como certas pessoas no momento de serem vacinadas”, acrescenta Proust. É isso: ao fugirem da realidade, os negacionistas, assim como Françoise, negam-se à alegria e ao bem-estar que a ciência e a tecnologia podem nos trazer. São medrosos que não ousam ter coragem.