Canal da mancha – travessia.

 

A linha de arrecifes de coral, que protege as águas da Praia Formosa e nos reserva um “mar de dentro” livre de tubarões e de grandes turbulências, é certamente a causa remota da tradição de nadadores de minha família.  Fica a mil e trezentos metros da costa, com uma fímbria de areia alaranjada, decorrente do esfarelamento das rochas, que, na altura da Ponta de Camboinha, chega a formar uma espécie de “ilha temporária”, hoje infelizmente infestada de turistas nas marés baixas.  A primeira das nadadoras, do tempo em que não havia piscinas nem professores de natação na Paraíba, foi minha irmã mais velha, admiradora de Esther Williams, a campeã que virou atriz de cinema na era dos filmes coloridos, que nos deslumbravam com o azul das ilhas do Pacífico. Liana, ao morrer, levou para o forno crematório seus óculos de nadar, colocados sobre o seu corpo pelo neto Adriano, num gesto espontâneo, que nos comoveu a todos.

Como era previsível, sendo irmãos mais jovens, todos a seguimos, com exceção de Mateus, grande velejador que não teve gosto pelas braçadas. Nelson foi campeão paraibano estudantil, eu, campeão universitário por dois anos, numa prova de 1.500 metros no mar, cuja principal dificuldade era não perder o rumo –  pois as balizas de chegada não eram vistas na saída – o que me aconteceu uma vez. Modestos feitos diante do desempenho de Yara, irmã caçula, que já cresceu na era das piscinas e dos professores (nós só contávamos com um livro e a prática). Yara foi campeã universitária brasileira do nado estilo “peito”, e ainda hoje, aos setenta anos, coleciona medalhas de natação “master”, no Brasil e no exterior.  Fomos, por nossa vez, seguidos principalmente por Leila e Luciana, sobrinhas, e Paulinha, minha filha, que dedicou vinte anos de sua vida ao esporte, vindo a ser campeã sul-americana, medalha de prata pan-americana e finalista nas Olimpíadas de Atenas. Quanto a Luciana, a natação lhe proporcionou uma bolsa em uma universidade dos Estados Unidos, de onde voltou casada com um jovem inglês, também desportista, que trocou o charme de sua ilha brumosa pelo calor e a luz dos nossos trópicos.

Ocorreu que Luciana, de férias em Formosa e na euforia do Ano Novo, propôs repetirmos uma travessia que havíamos feito, há mais de dez anos, da beira-mar até a linha de arrecifes, tendo como ponto de referência um curral de peixes, dos poucos que ainda restam em nossa praia.  E como, seis meses após o meu AVC, considerei que havia recuperado plenamente minha capacidade de nadar, apresentei-me como participante. Éramos um grupo de 14 pessoas, inclusive crianças (sobrinhos–netos), montadas em cinco caiaques, e apenas quatro nadadores: Luciana, Yara, Paulinha e este velho e obstinado amante do mar.

Houve uma imperfeição na saída, ao largarmos em linha reta para o curral, quando o melhor teria sido começar uns 50 metros à sua direita, pelo lado sul, para compensar a deriva imposta pelo empuxo da maré, como efeito do vento sudeste, dominante quase todo o tempo em nossa costa. Isso nos impôs um esforço maior, principalmente para mim, obviamente o nadador mais lento.

E botemos lentidão nisso: muito maior do que eu imaginara.  Ao ponto em que os caiaques seguiram à frente, acompanhados por Yara, enquanto filha e sobrinha me faziam cortina, uma de cada lado, às vezes quase simplesmente flutuando. E surgiram complicadores: no trecho de trânsito para lanchas e jet skis, que passavam às dezenas, tive de me agarrar a uma prancha e ser rebocado pelo caiaque de Gareth, nosso inglês paraibano, para transpor rapidamente a zona de risco de atropelamento.  Retomando as braçadas, verifiquei que estava sendo deslocado para o lado esquerdo do curral, como resultado da deriva provocada pelo puxão do mar, que parecia mais forte naquele trecho final.  E a correção de rumo implicaria nadar uns duzentos metros, talvez, contra a corrente. Minha filha propôs o retorno, e eu o aceitei, pois embora os movimentos de braços e a respiração estivessem em boas condições, já sentia alguns sinais de câimbras nas pernas. E acabei sem pisar na areia macia da franja dos arrecifes, nem ver a operação de despesca do curral, que se fazia, por acaso, naquele momento.

A volta ocorreu sem incidentes para mim, com o mar favorável, na escolta exclusiva de Paulinha, pois Luciana pedira liberação na fase final, juntando-se aos demais “expedicionários”, que pouco depois nos reencontrariam na praia.  Mas que lição posso tirar dessa aventura, parcialmente frustrada?

A primeira é que a travessia não deve ser repetida.  Não só pelas minhas reconhecidas limitações, mas pelo alto risco, para todos, de acidentes com veículos aquáticos motorizados, cada vez mais numerosos, que cruzam nosso mar em alta velocidade. Não temos mais aquele clima de perfeito sossego, que no passado nos levava a nadar, em bandos, oceano adentro, na companhia apenas de velhas jangadas e elegantes veleiros.

Abandonei também o projeto de cruzar a foz do rio Sanhauá, partindo do dique que protege o porto de Cabedelo do assoreamento até a praia de Fagundes, do outro lado, quase a mesma distância entre a nossa praia e os arrecifes. Deveríamos sair com algumas horas de maré enchente, quando a água azul do mar empurra a água suja do porto, e nos preveniria de ser arrastados barra afora, no fluxo da vazante.  Neste caso, uma empreitada de bem maior emoção, mas ao final rejeitada pelos possíveis parceiros: meu filho Eduardo, Paulinha, Yara, as sobrinhas Luciana e Patrícia.  Reconheço, no entanto, que as razões apresentadas eram ponderáveis: possível infestação de águas-vivas, frequentes em áreas portuárias, e a eventual presença de tubarões, que eram comuns no tempo da pesca de baleias.

Peço humildemente desculpas por ter, de maneira involuntária, estragado o passeio de Paulinha e Luciana, obrigadas a me acompanhar, em meu penoso avanço no “pélago profundo”.  Com efeito, as vigorosas braçadas de duas jovens nadadoras nunca poderiam compatibilizar-se com os lerdos movimentos de um octogenário.

Afinal, para mim restam as trilhas terrestres e a natação ao longo da costa, no sentido sul-norte, com as ondas em posição favorável e a respiração pelo lado esquerdo, para manter a distância da praia.  Por certo, bem mais monótona e menos estimulante do que uma travessia com objetivo determinado, quando se luta pela chegada, pelo ponto a conquistar.

Mas é o que temos. Ou melhor, o que terei.  Não é grande coisa.  Mas acho que ainda vale a pena.