Ao longo de dois anos de governo, o presidente Jair Bolsonaro, ajudado por seus filhões, e o seu ministro das relações exteriores, Ernesto Araújo, hostilizaram sistematicamente a China, embora esse país tenha mantido uma postura diplomática com o Brasil e seja o nosso principal parceiro comercial, um comprador insaciável do agronegócio brasileiro. Não é fácil entender as razões desta hostilidade. Duas hipóteses podem ser levantadas, ambas de um ridículo inominável. Primeira hipótese: a China é um país comunista e o Brasil não pretende ter relações amistosas com os comunistas. Isto é de uma enorme estupidez e completa ignorância histórica. A China é governada por um sistema centralizado de partido único que ainda se chama Partido Comunista, é verdade, mas o país tem hoje um capitalismo híbrido, sem qualquer semelhança com um sistema comunista, nem sequer social-democrata. Além disso, como para qualquer país sério, a organização política e social dos países que querem comercializar com o Brasil não tem a menor importância. A ideologia não é um critério para as relações comerciais. Mas Bolsonaro é capaz de não comprar pão na melhor e mais barata padaria do seu bairro, se o dono for petista.
A segunda hipótese é mais grotesca: Bolsonaro briga com a China para agradar ao seu ídolo, o ex-presidente Donald Trump, de triste memória. Neste caso, não se trata de um caso simples de imbecilidade, mas de traição aos interesses nacionais para agradar ao presidente de outro país, que é nosso concorrente em vários produtos. Para agradar a Trump, Bolsonaro pretende impedir a participação de empresa chinesa na licitação para instalação da tecnologia 5G no Brasil, numa manobra incompatível com as regras do comércio internacional. Este é um caso de um presidente da República que submete a política externa e comercial do país aos interesses dos Estados Unidos, em disputa comercial e hegemônica com a China? Como Trump, Bolsonaro sempre se refere ao Covid-19 como o “vírus da China”. A China é o maior parceiro comercial do Brasil, comprador insaciável dos produtos do agronegócio e potencial investidor em negócios e projetos no território brasileiro. E o Brasil vem criando dificuldades neste comércio e nas relações diplomáticas com este parceiro para agradar a Trump, por cima dos interesses nacionais. Bajulação humilhante de parte de um país grande e soberano, numa suspeita relação quase homoerótica.
Dois fatos novos tiram o tapete do presidente. A posse de Joe Biden na presidência dos Estados Unidos acaba com o seu namoro não correspondido com o ex-presidente Trump. Pior do que isso, a total dependência do Brasil da vacina produzida pelo Instituto Butantan, em parceria com empresa chinesa, neste momento crucial de uma nova onda do Covid-19, desmoralizou o discurso raivoso do presidente. Depois de desqualificar a vacina durante todo o ano passado, Bolsonaro começa agora a defender a vacina e afirmar, tardiamente, que a vacina é do Brasil. Ele ainda diz que o vírus é da China, e a vacina que, de fato, foi desenvolvida e produzida na China, agora é brasileira.
Em outubro do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro impediu que o Ministro da Saúde, General Eduardo Pazzuello, negociasse a compra da vacina Coronavac com o Instituto Butantan. “Não vamos comprar vacina da China e do Dória”, afirmou Bolsonaro com a sua habitual ignorância. Agora, na ausência de qualquer outra vacina, e diante do início simbólico da vacinação em São Paulo, Bolsonaro comprou a vacina da China, o pouco que o Instituto Butantan tinha disponível. Como ele não tem qualquer compromisso com a verdade, ignorou sua afirmação do passado recente e anuncia agora que a vacina da China é, na verdade, a vacina do Brasil. O que mudou? O Brasil só começou esta semana um processo, ainda tímido, de vacinação porque, contra toda a resistência e condenação verbal de Bolsonaro, o governo de São Paulo entrou em negociação com os chineses, comprou 6 milhões de doses que estão agora sendo aplicadas, e mais o princípio ativo para 4,8 milhões, que não chegaram ainda.
O ritmo de vacinação no Brasil depende da importação da China do princípio ativo para a Coronavac e para a vacina da Oxford/Astrazeneca, que será produzida pela Fiocruz. Embora o atraso da remessa desses insumos não seja uma represália da China à hostilidade permanente de Bolsonaro ao governo chinês – a China não vai cair nesta mesquinhez bolsonarista – será necessário um esforço diplomático para agilizar e destravar os processos burocráticos e logísticos. Quem vai conduzir esta negociação? O presidente Bolsonaro, que odeia os comunistas chineses? O templário Ernesto Araújo, que vê comunista no semáforo vermelho das ruas? A vacina pode até ser do Brasil, embora tenha sido desenvolvida na China. Mas a continuidade do plano de vacinação depende agora totalmente de insumos chineses.
Para os chineses, negócio é negócio. Mas é difícil que as autoridades chinesas tenham boa vontade para negociar com um inimigo que hostiliza sistematicamente o seu país, principalmente quando se trata de um produto altamente disputado no mercado internacional. E agora, Bolsonaro? O vírus é da China? E a vacina? A vacina do Brasil não será produzida, se não contar com o princípio ativo que, este sim, é da China.
Esse o resumo de dois anos do negacionismo, que um dia o Pres. Bolsonaro parece querer reverter, e no dia seguinte parece querer reafirmar. Para restaurar alguma confiança, ajudaria demitir o Ministro Ernesto Araújo, mesmo que o mundo todo saiba que esse Ministro do Exterior nunca fez nada que não fosse aprovado pelo Pres. Bolsonaro.
Eu fico pensando como Bolsonaro pôde ser eleito com seus discursos homofóbicos, misóginos e insensatos sob diversos aspectos. Claro, que a demonização do PT difundida pelos órgãos da imprensa contribuíram e muito para a sua vitória. Isso é fato. O resultado é que iremos amargar até 2022 uma pessoa completamente alienada do cargo que exerce. Um preço muito alto que os brasileiros não mereciam.