Cheguei ao posto de vacinação da prefeitura do bairro. “Tem hora marcada?”, perguntaram na entrada. “É claro, temo até estar atrasado”, blefei. “Pode passar.” A coordenadora veio me atender com uma prancheta na mão. “Nome e horário, por favor.” Respirei fundo. “Não estou na agenda. Menti. Queria vê-la para dizer que se houver excesso de vacina, descarte ou lista de espera, aguardo na calçada, é só me chamar. Não sou daqui, preciso fazer uma longa travessia oceânica. Se não chegar a meu país vacinado, morro.” Ela fixa meus olhos. “Idade?” “62” “Morbidades?” Rio, mas respondo fixando-a. “Dizem que tenho sobrepeso. Um pouco de asma, sim. Hipertensão controlada.” O que dizem aqueles olhos? “Entendo, mas o senhor não faz parte do grupo prioritário, monsieur. Tente agendar pela internet e venha quando chegar sua vez.” O olhar dela fixa o meu. Ela parecia querer que eu dissesse mais. Talvez que mentisse, que exagerasse. Ou simplesmente queria dizer que a conversa tinha acabado e que cabia a mim dar meia-volta. Fiquei calado, olhando-a. “O senhor disse que não é daqui? De onde é, então?” Respondi. Ela não conseguiu reprimir: “Oh là là…sei que não estão fáceis as coisas no Brasil.” Eu podia dizer que estou numa espécie de asilo sanitário na França, o que é verdade. Mas o pudor me refreia de carregar mais nas tintas. Meu aspecto já espelha todos os meus dramas. “Désolée, mas não posso fazer nada. Entendo que o senhor não queria voltar desprotegido. A vacina Moderna está chegando. Aí teremos bastante para acelerar a campanha. Mas ainda temos que lidar com a escassez. Bonne chance.”

Retomo o fôlego. Por um momento jurei que ia funcionar. “Será que tenho mais chances no Institut Pasteur?” Ela me olha. “Pode ser.” Era visível que estava frustrada. “Merci.” Já estava saindo quando ela me interpelou. “Já teve câncer?” Non. “Insuficiência renal?” Non. “Já fez transplante?” Non. “Tem alguma ligação com o setor de saúde?” Non plus. O que é incrível é que naquela troca de olhares sem sorrisos, limitada pelas máscaras, havia vários não-ditos. Ela queria que eu exagerasse, que dissesse que estava em outro grupo. Só para cumprir o protocolo. Ela queria me ajudar. Mas eu me recusei. Não porque seja santo, que seja poupado disso. Tanto é que vou continuar tentando em outro posto com os meus argumentos, blefando no meu limite. Saí da Place d ‘Italie pensativo. Imaginei os que chegavam às rampas de triagem de Auschwitz. “Reds di yiddish? Willst di arbeiten? Zehtsatin…ferchtaist di? Zehtstain!” E depois vinha mais. “Yeder arbeiten, nicht ka midé, nicht ka krenk”. Naquele olhar, concluí que ela não se importava que eu mentisse. Ela queria que eu dissesse o que o sistema queria. Como no diálogo em iídiche, na fala nervosa dos veteranos aos adolescentes que chegavam. “Diga que tem 16 anos (nunca 14). Diga que quer trabalhar, que não está nem cansado nem doente.” O médico nazista indultava as crianças por dar a resposta certa; não por dar a resposta verdadeira.


Eu poderia ter sido vacinado. Percebi a vontade dela de me ajudar. Bastava ter dito um oui ao invés de um non. Mas nenhum de nós dois quis transpor certo limiar. Naqueles olhos intensos, mil palavras se escondiam. Desesperados devem se comunicar assim nas guerras, quando soa a vigésima-quinta hora. Se sobreviver, não vou esquecer a intensidade dos olhos verdes que só me pediam para ajudá-la a me ajudar. Há grandeza sim no mundo.

*

Comecei o dia à porta dos dois centros de vacinação do 15 ème. Entre uma conversa e outra, fiz a pé um trajeto agradável pelas ruas Lecourbe, Vaugirard, Cambronne e pelo Boulevard Pasteur. Tenho algumas referências passadas em torno das estações de metrô Convention e Volontaires. É uma Paris de parisienses. Quero dizer, sem apelo para os visitantes. É um bairro de restaurantes em conta – não necessariamente populares -, bom comércio e um certo bucolismo noturno. No Instituto Pasteur, não tive acesso a quem decidia. Fui barrado na porta, quase na calçada. As pessoas responsáveis pela vacinação ficam no segundo andar e não havia possibilidade de furar o bloqueio. Já na prefeitura do XV ème, atrás da praça Adolphe Chérioux, onde passei uns dias na década de 70, a acolhida foi um pouco melhor. Um voluntário que cuidava do encaminhamento me ouviu atentamente. O olhar dele me lembrava o de alguém. O tom de voz também.

“Vamos fazer o seguinte. Volte aqui às 17 hs. Nós encerramos às 17:30h. Talvez dê para encaixá-lo a depender de quantos faltarem hoje. Não é uma promessa.” Mas foi uma luz. “Estarei de volta às 17h, sem falta. Se não der, vou entender perfeitamente. Se der, tomo champanhe.” Então saí com a cabeça cheia de planos e o coração cheio de esperança. Agora sabia quem ele me lembrava: o padre Gabriel, o holandês de nome providencial, do Colégio São Luiz, no Recife. Foi ele quem ouviu minha confissão de primeira comunhão. Quando eu cheguei com a lista de pecados, ele riu, mandou parar com aquilo, disse que era só uma conversa e nunca mais o esqueci. Tempos desses, já doente, ele voltou da Holanda para morrer em Garanhuns. Ele bem que podia mandar uma mensagem para o primo dele aqui hoje. Se não der certo, amanhã tento outro bairro, fora da Paris dos cartões postais. Marchons, marchons…

*

Eu precisava estar na prefeitura do XV ème às 17h para ter alguma chance de ser vacinado. Foi o que ficara apalavrado com o voluntário – que repetiu 3 vezes que nada podia prometer. Às 16h, subi no ônibus que me levaria até lá. No caminho, havia uma enorme manifestação, a verdadeira paixão nacional. Passamos dez minutos parados. Falei com o motorista. “Abra a porta para saltarmos, não é?” Ele ofegou. “Faltam 200 metros para o ponto.” Subi o tom, ele cedeu. Peguei um táxi na faixa oposta e quis mostrar que não estava para brincadeira nem amenidades. “Pegue a Guynemer, a Vavin, o Boulevard Montparnasse e a rue Lecourbe. Evite o Panthéon e o Luxemburgo.” Ele riu. “O senhor engoliu um Waze.” Também ri. “Minha aposta é alta. Talvez seja vacinado hoje, mas não posso me atrasar.” Ele leu a tela: “Está dando 22 minutos, mas em 15 acho que a gente chega. O problema é ceder passagem e perder tempo no semáforo.” Fui sincero. “Tem dias em que gentileza é suicídio. Hoje é um deles.” Deu 17,80 euros no taxímetro. Magnânimo, deixei 20, um modesto bônus de performance. Chegando lá, a dificuldade de praxe para entrar. “O senhor tem rendez-vous?” Mais um blefe. “Oui, para as 5 horas”. Ele acreditou. Contrariamente ao Instituto Pasteur, na prefeitura eles não têm listas de conferência na calçada.

Veio a segunda barreira, que eu conhecera pela manhã. “Abra as mãos para o álcool e troque a máscara por uma nova.” Rebati. “Está novinha, tem menos de uma hora de uso.” Eles sorriram. “As nossas são ainda mais novas.” A gente agora detecta o sorriso das pessoas pelos olhos, o que é má notícia para a odontologia estética. Vem então o terceiro nível do calvário. “Qual seu horário?” Opto por falar um francês estrangeirado, descaracterizado de temperos para me dar ar vulnerável. Um homem que depende da clemência alheia, que foi atrás de sobras de vacina, não pode falar como se estivesse num conselho de administração. Alguma coisa na expressividade tem que trair a marginalidade, o pertencimento a um universo desprotegido. Puxei o passaporte  e coloquei-o na mesa. “Estive aqui hoje. O voluntário me disse para vir às 17 horas. Cá estou. Atravessei Paris sem queixas. Vocês não me devem nada. Mas soube que nessa hora há excedentes de vacina.” Ela olha a chefe. “Sim, monsieur, raramente. Mas quando acontece, chamamos por telefone quem está na lista de espera. O seu telefone estava cadastrado?” Apliquei um drible. “Optei por vir no escuro. Se os convocados da lista não responderem, eu estou aqui. Não concorro com ninguém. Concorro com a pia, com o lixo. Se for para descartar a vacina, jogue-a dentro de mim. É tudo o que peço.”

5:10, 5:15, 5:20…o posto estava quase vazio. Três boxes de vacinação estavam ociosos. Fingi ler para ouvir melhor. Um médico com a fisionomia de Alain Prost sussurrou para as moças. “Façam já a ficha dele para ganharmos tempo. Sobrarão duas.” Fiz de conta que estava ligado na leitura. Me chamam. Mantenho a calma, sem triunfalismo. Respiro fundo para desacelerar o coração e guardo o livro no bolso. Ainda não acredito que vá dar certo. Entro num recinto e uma médica me faz 30 perguntas. O processo emperra quando digo que não tenho número de Sécurité Sociale. É o mesmo que um brasileiro não ter CPF.  5:35. Faltam 25 minutos para o toque de recolher. Sorte que eu já tinha preenchido um formulário para circular depois das 18h, se for parado pela polícia. O sósia de Alain Prost minimizou a questão da Sécurité. Respirei aliviado, mas tinha algo mais no ar. Para tentar consumar um fato, tirei o casaco e a malha pesada. Estava só de camisa de algodão de manga longa, fácil de levantar. Que beleza, eu pensava. Ser vacinado justamente no dia em que Trump vai embora. Para mim, havia uma simbologia forte nisso. Reunião de cinco ou seis deles. Eles falam de mim, é óbvio. Alain Prost veio até mim. Sinto que ele vai desfechar a facada fatal. Alguma coisa pegou.

“Temos uma má notícia. Os pacientes das 17h não vieram.” Então, balbuciei: “Nesse caso, há mais sobras?” Ele negou. “É o oposto. Para vacinar o senhor, cujo empenho a gente reconhece, precisaríamos abrir um frasco com 5 doses. Quatro seriam desperdiçadas. Espero que entenda.” Nada como já ter levado umas porradas na vida. “A última coisa que quero é isso, docteur. Meu espírito aqui é o de concorrer com o lixo, não de gerá-lo.” Ele me tocou o ombro. “O que vai fazer amanhã?” Fui sincero. “Acordar cedo e percorrer o XX ème, fazer um porta a porta pelos postos. Como os antigos vendedores de aspirador de pó.” Então ele disse: “Obrigado pela compreensão. Vá para casa tranquilo e durma bem. Acompanho o descaso com a Covid no Brasil. É uma pena. Amanhã, venha aqui quando quiser. Eu mesmo vou recebê-lo. Seu nome vai para a lista.” Eu estava na lista do dr. Prost. Como no passado, uns foram para a lista de Schindler. Não há guerra sem listas, pensei.

No metrô Vaugirard, embalado pela esperança, imaginei os coqueiros do Recife e a avenida Paulista no entardecer. Será que pela primeira vez em 10 meses tinha se aberto uma janela de segurança? Então, estranhamente, senti saudades imensas de Paris. E disse para mim mesmo que por enquanto ainda não tinha ganhado nada. E que, na verdade, talvez nem fosse vacinado no dia seguinte. A lógica da burocracia está sujeita a humores.

*

Era meio-dia quando entrei no centro de vacinação da prefeitura do XV ème. O vigilante foi caloroso. “Vi-o aqui ontem 2 vezes. Bem-vindo.” Um magrebino conhece a sorte de um nordestino. Há um código indizível que perpassa a sina dos sobreviventes. Uma senhora armava um barraco com o mais duro dos atendentes. Esta sim, amanheceu disposta a dar uma carteirada. “Moro no arrondissement e pago meus impostos. Exijo ver o médico.” De minhas observações de ontem, eu sabia que aquele rapaz era o pior para isso. Era o elemento alfa do posto, o que não se intimidava. Parecia os rapazes insolentes que fazem o controle de segurança no aeroporto de Israel. Ele pediu à senhora que se afastasse para me ceder passagem. “Bonjour, vous allez bien?” Perguntou e sorriu. Era uma forma de mostrar à coroa que seu emocional não estava abalado pelo seu destempero. Que ele não desaprendera a sorrir, nem que fosse com os olhos. “Bonjour, très bien, merci.” Ajudei-o na farsa dele para ele me ajudar na minha. Sem querer, ou querendo desesperadamente, deixei um rastro de aliados depois das vigílias da véspera.

Dar o máximo de si é importante.

Uma vez em Caruaru, um guia mirim acompanhou o carro de um polonês-paulistano de quem fui amigo por décadas, cuja filha namorei mais adiante. Eu disse a ele e à família: “Que garoto chato. Não pare, seu Fiszel, não precisamos dele.” Mas ele parou. “Deixa o menino subir, rapaz. Ele merece uma chance. Eu vendi gravata no Viaduto do Chá quando cheguei ao Brasil. A gente tem que reconhecer o esforço do outro.” Aquilo me ficou, o apreço pelo esforço máximo, pela perseverança. No ginásio, dona Myrtha Magalhães deu um 7 à minha redação, e um 9 à de um colega. Pedi para ler a dele, comparei-as, e fui até ela quando a sineta tocou. Tinha só 15 anos, mas sabia ser irônico. “A senhora acha isso justo? A minha redação é melhor do que a dele. Se a dele mereceu 9, a minha merecia 10.” Ela disse: “O nome desse colégio é Aplicação, meu filho. Ele se aplicou ao máximo. Aquilo que ele deu era o que ele podia dar de melhor. Você ficou aquém, escreveu qualquer coisa para cumprir tabela.”

Que lição para a vida. Ela nunca me abandonou.

Uma médica calorosa chegou. “Vamos lá?” Baixinha, magrinha, cabelo loiro curtinho, quase 70 anos, tinha minha ficha na mão. “Vou me ocupar do senhor a pedido do meu colega. Ele me disse que depois da segunda injeção o senhor pretende voltar para o Brasil. Que horror Manaus, hein?” Sem me dar tempo de comentar, levou-me à cabine. Mohamed, gentil e acolhedor, me perguntou se eu tomava anticoagulante. “Só em viagem aérea longa.” Antes que ele aplicasse, interrompi: “Posso fazer uma foto? É para mamãe.” Pelos dedos de um muçulmano, um descendente de cristãos novos das judiarias da Serra da Estrela podia estar driblando a morte. Ufa.

O rito foi sumário e indolor. Foi em vão minha careta para suportar a picada. “Venha para a sala de observação. Fique 20 minutos aqui.” Fiquei vendo a foto do grande momento no telefone, com ares de mulher fertilizada. Mamãe ontem me ligou tarde da noite, quase madrugada em Paris, porque cometi a besteira de comentar com meu irmão que iria me vacinar. Que depois de peregrinar bastante, parece que tinha conseguido uma brecha entre as nuvens. “Pelo amor de Deus, não fure a fila. Sei que você é impetuoso. Agora é minha vez de pedir o que você me pediu esse tempo todo: tenha paciência, mas não faça nada ilegal. Seja correto com o país que o acolheu.” Fiquei cego de raiva com o meu irmão, boa gente mas péssimo comunicador, que truncara a informação. “Mamãe, eu não sou santo, mas também não sou canalha. Eu não vou ser vacinado num corredor escuro do metrô, de lote roubado. Eu insisti, sim, para ser contemplado pelo sistema de vacinação oficial do país e dei plantão para receber uma dose de sobra. Como quem pega xepa de feira. Dei sorte. Ninguém podia fazer isso por mim. Eu estou clandestino, ilegal, eu não existo para o Sistema. Se eu não disser que estou aqui, se não berrar por atenção, vai ter criança de 10 anos sendo vacinada na minha frente. Quem sabe de minhas morbidades sou eu, e não o Sistema.”

Ela então cedeu.”Que alívio, meu filho. Antes uma morte honrosa do que uma vida de expedientes. É que ainda estou chocada com um fotógrafo sem-vergonha que furou a fila e ainda ficou se gabando.” Fiquei um pouco magoado porque veio dela. Dos demais, atribuir minha desenvoltura à esperteza, encaro como elogio. “Não enganei, não menti, não seduzi. Chutei a bola e não a canela alheia. Agora fui tenaz, mamãe, me defendi como pude. Não iria conseguir nada se ficasse em casa esperando pela providência divina.”

Perdido nesses devaneios, chegou a médica. “Se estiver bem, pode ir embora. Nos veremos na segunda dose. Vou passar a data por e-mail, mas deve ser lá por 15 de fevereiro. E sorte para seu país.” Para disfarçar a emoção, disse: “Posso contar uma coisa? Temos um analfabeto na presidência que cortou nossas pontes com o mundo. Quero ainda vê-lo numa corte internacional. Sabe o que ele diz para os assemelhados dele? Que depois da vacina, a gente começa a virar jacaré.” Ela me olhou perplexa: “Comme le logo de Lacoste? Mas ele é louco.” Ai quem riu fui eu. “Exactement, comme le logo de Lacoste. Estamos sujos com os Estados Unidos; mal vistos na Europa; odiados pelos chineses e desprezados pelos indianos.”

Sai pela praça Adolphe Chéroux e parei na frente do coreto. Uma vez fiquei num apartamento aqui, já nem lembro em que encarnação. O que fazer agora? De onde tirar motivação, acabada a adrenalina do primeiro capítulo da vacina?

Desisti de pegar o metrô em Vaugirard e sai caminhando no inverno ameno. Se tomar a segunda dose sem atrasos, estaria liberado para viajar em março, um ano depois de chegar aqui. Por onde recomeçar a vida? Prefiro nem pensar. Nenhum projeto foi tão estruturante quanto escrever dois livros nesse período. Não fosse a escrita, as imunidades estariam tão baixas que o corona atravessaria as pistas dos Champs-Elysées para vir me laçar. Estou vivo porque escrevi.

Há um mês venho blasfemando a França. Tenho horror confesso à mentalidade burocrática e perdi grandes chances na vida por não suportar preencher formulários. Tenho pavor ao Estado em geral, seja de onde for. Não reconheço num ser humano qualquer supremacia sobre o outro, individual ou coletivamente. Sei que exagero, é como propugnar um mundo anárquico – mas é como sou. Sou desses simplórios que acreditam que o Estado pode ser bom para os desfavorecidos. Por outro lado, basta termos um governo desmoralizado para nos darmos conta da falta que fazem cabeças pensantes na formatação dos serviços públicos, por exemplo.

Bem, a gente só é duro com quem gosta. Eu pelo menos sou assim. Por isso que fui tão cruel com os discursos lacrimosos de Macron. Hoje devo a esse Estado que tanto xinguei, a primazia de poder sonhar de novo. Não é irônico? Semana passada eu pensei até que diante de meus desabafos, eu perdera a prerrogativa moral de ser vacinado aqui. Mas a mãe-República da velha França, que jamais me faltou em quase meio século, relevou meu azedume e parece ter agido com a sabedoria diagnóstica de mamãe. “É que você é ariano, meu filho. Ariano da pior espécie. Você adora uma dificuldade, cresce na briga, é duro com o que você acha injusto, é meio sem limites. Mas é puro amor na paz.”

No Luxemburgo, passei numa cabine fotográfica e me olhei no espelho. Não vi engelhamento de jacaré na pele. Por via das dúvidas, nada de usar camisa Lacoste nas próximas semanas.