Numa sociedade de traços pouco modernos e ainda aristocráticos como a nordestina, aqui e ali surgem, num esforço tremendo, os chamados “self made men”. Tarcísio Pereira, no Recife, foi um desses homens. Vindo, aos dezesseis anos, do Rio Grande do Norte, “recifez-se” em Pernambuco, como diria Guimarães Rosa. Não tinha nome, nem dinheiro, nem brasão de família. Não tinha, que pecado grave, a pose que tantos passam a ter depois do êxito e do sucesso. Nunca teve. Chamava a atenção sua simplicidade. Como bom vendedor, sabia sorrir e ter atenção. É assim que se conquistam clientes, e os clientes, quem não sabe?, é que fazem o negócio. Aí que morava o perigo para o jovem Tarcísio. O perigo e a salvação, como no célebre verso de Hölderlin. Seu negócio seriam os livros. Direito e jornalismo ficariam para trás, como registra Rostand Paraíso em sua obra “Livros, livreiros, livrarias”. Seguiria o exemplo de Jacó Berenstein, da livraria de mesmo nome, de quem fora empregado.
Os tempos eram sombrios e autoritários, e, portanto, difíceis para pessoas do ramo, mas havia frestas de luz e cumplicidades que só os livros proporcionam. Tarcísio iria pintar o sete, era uma questão de tempo. Numa pequena loja inaugurou a sua Livro 7, cujo nome vinha da própria rua em que tinha endereço: a Sete de Setembro, na região central do Recife, no bairro da Boa Vista. Logo pôde duplicar a loja e logo pôde passar a um casarão. Dentro de alguns anos, a Livro 7 adquiriria, na mesma rua, como que para fazer jus à sua riqueza artística e cultural, um megaespaço de mais de mil metros quadrados. Era a materialização de um sucesso anunciado e construído com suor e sabedoria. Tornava-se a maior livraria do Brasil. Nas palavras de Gilberto Freyre, uma “pan-livraria”.
Vieram os anos de glória. E não por acaso. Tarcísio inovava: abolira balcões, ele próprio circulava com frequência por entre livros e clientes; instalara bancos para incitar a leitura e o diálogo; criara uma agenda com poemas em cada mês e que, para glória de muitos, foi publicada por anos seguidos; abrira um espaço para lançamentos e, não menos importante, lançara um cartão de crédito que nos irmanava numa feliz comunidade de consumidores. Os autores, quer consagrados, quer iniciantes, tinham agora a sua ágora. Vários dos consagrados locais ganharam grandes fotografias nas paredes. Um dia, quem sabe, nós, jovens, estaríamos naquelas paredes eternas, expostos à voragem dos olhares dos inúmeros clientes.
Na Livro 7, os livros não se ensimesmavam em frias prateleiras, pareciam banhistas numa praia ensolarada a transpirarem uma luxúria especial. “Toquem-me, levem-me, abram-me, disponham das minhas gemas e delícias”, era o que diziam os volumes a perder de vista. Esse à vontade dos livros favorecia até os chamados “amigos do alheio”, que, no caso, ou eram estudantes pobres, ou eram professores e intelectuais de renome, cujos paletós eventualmente eram cúmplices da ágil matreirice, para ficarmos num eufemismo que agradará a memória de todas e todos.
A Livro 7 era, em poucas palavras, toda uma atmosfera. Foi ela, meio século depois, a legítima sucessora da legendária Esquina da Lafaiete como ponto de encontro da vida intelectual, como praça de boemia. Entre amigos ou inimigos, ou simplesmente desconhecidos, floresciam os livros e a bonomia de Tarcísio. Sobretudo o seu riso compreensivo, o seu gesto solidário e fraterno. Para quem não o conhecesse e dele quisesse se aproximar, bastava que disséssemos: “É aquele de jeans azul e de boné azul”, a sua indumentária imutável, o seu uniforme de soldado dos livros e da cultura, mas tão leve e claro como um verso vivo de Carlos Pena Filho.
Agora foi-se Tarcísio em precoce e indesejada viagem. Agora, como disse Machado, podemos elogiá-lo à vontade. Na sua falta é que sabemos o quanto fará falta, o quanto lhe devemos. Já o sentíramos quando do fechamento da própria Livro 7. Mas agora sentimos mais ainda: é o criador que se vai, é o homem solidário e gentil que nos foi subtraído. Poucas vezes um número foi tão mágico. Poucas vezes um livreiro terá sido tão amigo. Obrigado, Tarcísio!
O digno Tarcísio merece a digna exaltação de sua trajetória de vida. Brilhante homenagem. Parabéns Paulo Gustavo.
Paulo, seu artigo sobre Tarcísio da Livro 7 me botou à beira do pranto. É assim, a partir de certo instante, a gente começa a ver passar o próprio enterro. E a partida de Tarcísio é uma cena do meu, de um tempo que está indo embora.
Recordo. Nos intervalos de almoço, eu, que batia ponto na rua Riachuelo, quase nunca deixava de passar lá. E confirmo: naquela livraria, tudo era suave e convidativo, a começar do “soldado de azul” que você descreveu… Comprei das mãos dele, por sugestão dele, um livro a que me afeiçoei, The Outline of History, de HG Wells. A primeira História analítica que possuí. O original meu filho recentemente comprou para mim, em NY, numa daquelas edições impressas na hora. A edição da Livro 7 era uma primorosa tradução de Anísio Teixeira, em três grossos volumes.
De outra feita, conversei lá com Mauro Mota, impecável no seu paletó de linho branco, a cabeleira e o bigode também brancos. Levemente perfumado e maneiroso como convinha a um antigo professor de normalistas. E recebi uma aula: aquele maravilhoso poeta da província morta, da amada morta, de sua Nazaré, dos engenhos em volta, dos bairros do Recife, das procissões do Bom Jesus dos Passos (“trezentos e três cortejos”), da estenodatilógrafa eficiente e intocada, do galo e suas asas metalúrgicas, do tempo sem remédio na farmácia— aquele notável poeta falou-me de poesia como de uma dama com quem às vezes trocava um bom dia, mas com quem não tinha qualquer intimidade. Veja só, ele, o primeiro enfeitiçado por sua deusa…
E era assim a Livro 7, dava o ambiente para esses momentos eternos. E por isso eles aconteceram. E o artigo é o agradecimento de uma geração inteira à figura de um admirável servidor seu, que não faltou ao serviço. Obrigado, abraço.
Obrigado, amigo, por seu comentário tão honroso e fraterno.
Abraço
Belíssimo e merecido texto Paulo Gustavo. Também, como Luiz Raposo, estive “à beira do pranto”. Mas, as palavras, por mais belas, e estas suas são sublimes, e creio que você concordará comigo, jamais dirá tudo daquele homem extraordinário que foi o Tarcísio. Simples e sábio. Uma perda imensa para a minha cidade, para o Brasil.
Obrigado, Prof. Elimar.
Viva Tarcísio!
Abraço do seu leitor
As palavras jamais dirão do tanto bem que este homem fez aos que, sequiosos de cultura, como eu, buscavam o templo que ele, vagarosamente, erguia em minha Recife. Disse que era uma perda para o Recife e o Brasil. Mas, como bom pernambucano, era para dizer: e para o mundo.
Paulo Gustavo, conhecia pouco a Livro 7 e nunca me aproximei de Tarcísio. Talvez o fato de morar tanto tempo em São Paulo, vindo ao Recife sempre em pesquisa de campo e com um tempo curto, que mal dava para a grande família e os velhos amigo. Tua bela homenagem, junto com o comentário de Luiz Alfredo, me fizeram ficar saudosa desse tempo que não vivi. Carnavalesca, por duas vezes atravessei a ponte Duarte Coelho (uma temeridade) em pleno sábado que deixara de ser de Zé Pereira para ser do Galo, para sair do camarote da prefeitura, empurrada pelo suor da multidão, para alcançar o “Nós sofre mas nós goza” em frente à famosa Livro 7, bloco carnavalesco imortalizado nos fechos das divertidas crônicas de Zé Simão. A figura humana de Cortez, de quem escrevi uma parte da biografia, tem paralelos com a de Tarcísio, até por serem ambos “Papa Gerimum”.
Grato, Teresa, por seu comentário.
O sábado não era de Zé Pereira, mas de Tarcisio Pereira.
Kkkk
Abraço