“Poucos lugares no planeta são tão sensíveis ao poder quanto Brasília.” Releio minha própria frase e constato que não gosto dela. É fraca, é anódina e não diz tudo. Você pode fazer melhor, sussurro para mim mesmo. Então sai a nova versão: “Em nenhum lugar do planeta tem gente que se sujeita de forma tão vil às evidências de poder quanto em Brasília.” Está quase boa, mas ainda faltam elementos mais contundentes. O que você quer mesmo dizer, lá do fundo do coração? Pois bem, temos uma última chance, vamos lá: “Em nenhum lugar como em Brasília, o poder tem o condão de limpar o mais tenebroso dos prontuários.” Pronto, melhorou. Agora sim, podemos ir aos fatos.

Apesar da deterioração da representatividade política a que assiste a Câmara dos Deputados nos últimos 20 anos, poucas vezes tivemos uma disputa à presidência envolvendo gente tão medíocre. Se houvesse um olho mecânico para desempatar a disputa entre Arthur Lira e Baleia Rossi, eu diria que, para não variar, ganhou o que tem a pior agenda, o potencialmente perigoso, aquele que está mais para Eduardo Cunha do que para Michel Temer, para nos atermos a dois presidentes fixados na memória da Casa. Enfim, ganhou o malvado explícito. E isso pode se tornar má notícia para quem acha, num primeiro momento, que venceu com ele. Mal saiu o resultado, Arthur Lira já promoveu o primeiro regabofe da temporada, indiferente à pandemia. Já espalhou aos ventos que é candidato a governador de Alagoas e postulante à vaga de Deus supremo entre Maceió e Brasília, passando por São Paulo, é claro, para dar água à tropa. A capital, a criação suprema de Juscelino, simplesmente adora isso. Lá quem tem projeto de poder não tem defeito. O único pecado capital que Brasília não perdoa é a desambição. O resto está valendo, é do jogo.

Nem um sultão otomano teria tanto o indulto das odaliscas de plantão quanto um político coroado em Brasília. O poder da caneta, a prerrogativa de preencher dezenas de cargos, de efetivar centenas de temporários, de promover as eminências pardas e de construir em dois anos de mandato um pecúlio que garanta uma lauta aposentadoria, são elementos que incendeiam a imaginação de Lira e a de quem o cerca. O entourage passa a torcer pela realização daquele plano de voo como quem torce por um jogador de futebol, por um ator ou por um cantor popular. O interessante é que esse novo Messias – que pode se chamar Eduardo como um rei ou Severino como um cangaceiro – se escondia até ontem nas sombras de relativo anonimato.

Mas de repente, o tropel das odaliscas anuncia sua chegada a Jerusalém.

A primeira noite é sintomática do reinado que se anuncia. Velhas namoradas esquecem os rancores, novas candidatas se alinham no grid de largada, assessores em potencial se esforçam para ser notados. O novo presidente da Câmara se vê agraciado com a pílula do quinto orgasmo múltiplo. Doravante poderá tudo. Só o antecessor fez 800 voos em jato da FAB, inclusive para fins de semana em Fernando de Noronha. Ora, por que não ele? Tudo vai mudar..., como diz a música. Uma coisa é você ser candidato e ter que se mostrar conciliador, compreensivo e empático. Outra é a lei que rege o fato consumado, depois que você acomoda os fundilhos na cadeira. Lira passa a ser termômetro da tranquilidade alheia, e não o contrário. É o peão convertido em dama onipotente. Quem compraria um carro usado de Lira? Até a véspera da unção, ninguém. Mas hoje em Brasília, ele já consegue vender o carro enferrujado a preço de novo e ainda leva uma odalisca de brinde.

A partir dessa semana, ao rei Arthur nada se negará. Alguém duvida? Pois veja-se a foto da animada festa que atraiu até quem não votou nele. O microfone passou de mão em mão. No futebol, reina a Maria Chuteira. No meu tempo de adoelscente, havia a Maria Gasolina – a menina que escolhia seu pretendente pelo carro dele. As Marias do Congresso são imbatíveis. Febris na noite de consagração do sultão, encontram fórmulas para insinuar que sempre estiveram ao lado dele, que foram as primeiras a lhe dizer que sua vez estava chegando, que há dias não visitam a família por causa da campanha. Faustão não tem suas bailarinas de sorriso fixo? Arthur tem sua bateria de chacretes para o que der e vier. É cláusula pétrea de Brasília.

Condescendente, magnânimo, levemente embriagado, o agraciado da noite vai até o banheiro passar água no rosto. Olhando-se no espelho, dirá: chegastes lá, hein? Louco de contentamento, ele faz planos. Antes de tudo, pretende neutralizar a sanha da Justiça que investe contra ele e os seus. Mas doravante, convenhamos, que magistrado vai esnobar um convite seu para um drinque? Primeiro, fará isso com jeito. Se preciso for, usará a força. Depois vai desencavar velhos aliados, perdoar eventuais desafetos e promover a concórdia em seu núcleo. O que o poder não compra? É importante não se iludir por aquela ligação emocional que sente pela Câmara naquela noite. Seu projeto é chegar ao Palácio dos Martírios. Abrindo espaço para os herdeiros em Brasília, poderá emular o modelo de Renan Calheiros, o mais vitorioso até hoje. Mas sendo noite de festa, isso pode esperar. As odaliscas se consorciam quando saem do radar do sultão. Sabem que precisam agir em bloco para agregar prestígio ao harém candango. Mas na frente dele, todas buscam um traço de individualização, um olhar bondoso, um afago, uma inconfidência sussurrada ao pé do ouvido. Ah, Juscelino, essa tua criação…

À hora de dormir, Arthur faz as contas: passa mais dois anos em Brasília, depois mais oito em Maceió. Na sequência, engata um mandato de senador. E daqui a 17 anos, quem sabe, pode ser candidato a Vice-Presidente da República numa chapa vencedora. E o Brasil, presidente, onde entra nisso? Sim, é claro, por que não? Ah, o Brasil…