Ilustração da Obra “Os Sonâmbulos” de Hermann Broch (1886-1951).

 

Seja qual for o observador e sejam quais forem suas convicções, mas presumindo a boa-fé daquele e a boa qualidade destas, o diagnóstico da grande crise brasileira não anda nada animador. Sonâmbulos e furibundos – eis como Bolívar Lamounier enquadra os personagens da cena política, em especial depois dos acontecimentos que levaram, pelo menos na Câmara dos Deputados, a uma recomposição em torno dos políticos fisiológicos por excelência, que nos acostumamos a identificar com o Centrão, e do presidente extremista que temos, cuja marcha para um segundo mandato às vezes parece uma reedição da “resistível ascensão” de figuras autoritárias em outros tempos e lugares não menos confusos.

“Resistível”, não fosse, exatamente, a profusão de sonâmbulos capazes, em sua fúria inconsequente, de quebrar cristais, arruinar móveis e incendiar a casa. A leitura classicamente liberal de Lamounier tem insistido em temas que mesmo gente de praias mais distantes – mas que também combate, com denodo, o moderno “i-liberalismo” político – pode compartilhar. O retumbante fracasso das elites nacionais, por exemplo. Ou, como consequência disso, o esfacelamento da sociedade numa miríade sem fim de corporativismos grandes e pequenos, pouco defensáveis ou indefensáveis de todo, adiando para um futuro indefinido a constituição de uma autoridade pública democrática que regule os apetites privados e garanta uma ideia razoável de bem comum – um ponto de vista que pode reunir, ainda quando usem pesos e argumentos bem diferentes, direita e esquerda, liberais e progressistas.

O fracasso das elites, de fato, assusta. Alguns dos seus sintomas poderiam entrar para o anedotário, não fossem a tragédia epidemiológica em curso e o impacto mortal que implicam. Nada explica, por exemplo, que um número considerável de profissionais de Saúde e de altas entidades médicas alardeie convicções extracientíficas ou anticientíficas, ou ainda se calem (e, pois, consintam) diante de “soluções” mágicas apregoadas por meses a fio pela mais alta autoridade da República. Inexplicável a declaração do terceiro ministro da Saúde – um general (da ativa!) fixado no cargo depois da exclusão de dois médicos que se recusaram a impingir cloroquina – de que até muito recentemente desconhecia o SUS. Surreal a admissão de que, em função destas e outras atitudes, como a cegueira deliberada em relação à temática ambiental, o País se encaminha para a condição de pária internacional – e, antes, nesta condição deva se instalar cioso do seu isolamento e orgulhoso da própria falta de luzes.

O conjunto da obra logo se descortina quando descobrimos, espantados, que na prática não chegamos a colher os frutos do fim da Guerra Fria nem sabemos como nos inserir no novo ambiente de competição global. Setores estratégicos da burocracia civil e militar continuam a lutar contra “o comunismo”. O inimigo seria solerte, sempre igual a si mesmo, ainda que tenha aposentado as armas do conflito de classes e agora se apresente como o patrocinador de uma insidiosa guerra cultural. O objetivo, no entanto, não muda: destruir a religião, a família e a propriedade, minando os costumes e corroendo as instituições tradicionais. Ora, convenhamos: elites assim orientadas só podem se reunir em torno de uma ideia anacrônica e mal-ajambrada de “Estado ético”, detentor de verdades absolutas e combatente encarniçado contra a “correção política”, as minorias e os direitos humanos.

O fato é que nos encontramos singularmente desarmados diante desta ofensiva ultraconservadora. A ação de governo e, em particular, do presidente, a quem seus devotos atribuem faculdades mitológicas, expressa e promove a fragmentação corporativa da sociedade. Uma ideia de Brasil solidário e socialmente coeso tende a se perder em meio ao vozerio dos grupos que se conectam diretamente com a figura presidencial, como agrotrogloditas, pastores do culto à prosperidade, mercadores de armas, membros dos aparelhos de segurança privados e públicos – estes últimos potencialmente livres e desembaraçados de qualquer controle, no caminho traçado pelo já extenso fenômeno miliciano. A pergunta é que tipo de Estado e de sociedade pode advir de uma fermentação tão desfavorável como esta. Uma “sociedade aberta” é que não é.

No plano da governação, não se sabe se a pauta presidencial terá passagem fácil no novo Congresso dominado pelo Centrão e outros aliados do presidente, ainda que, como dissemos, os sinais não tranquilizem. Desapareceu a “geringonça” à brasileira, que garantia um mínimo de sensatez nas decisões a partir da antiga presidência da Câmara, restando torcer para que renasça, em mudadas e mais difíceis condições, no Senado da República. A promissora dinâmica de unidade que se ensaiou recentemente em torno dos partidos do centro e até da esquerda está emperrada, e a própria unidade interna de cada um dos partidos está comprometida. No momento, como não é difícil ver, também as elites oposicionistas se mostram sonâmbulas e furiosas, além de impotentes.

Toda a cena, pois, está preparada para nela exercermos o “pessimismo da razão”. Nas palavras de Bolívar Lamounier, nem mesmo se pode descartar “um retrocesso abrupto, muito cruel para as almas mais frágeis”. Tal pessimismo, porém, pode se transformar num artifício retórico à beira do abismo que não salvaria sequer nossas almas individualmente. Liberais e progressistas – e as diferentes forças nas quais se expressam, apesar de toda a fragmentação – têm o compromisso urgente de se reencontrarem, seja como for, para evitar que se instale de vez e perdure entre nós o obscuro tempo da contrarreforma.