Shattered – by Grégoire A. Meyer.

 

Nosso ex-professor e grande poeta, César Leal, criador do Mestrado em Letras da UFPE, costumava dizer que durante a Idade Média usava-se, para se saber das horas, a seguinte pergunta: “Como vai o inimigo?”. O tempo era o inimigo. Continua a sê-lo, sempre será. Outro poeta, Baudelaire, nos lembrou, num poema, que o tempo é “um jogador que ganha sem cessar”. Ovídio, poeta latino, chamou-o de “devorador das coisas”. Se observarmos bem, todos os grandes poetas cantaram e decantaram o espírito do tempo e, alguns em particular, sua feição destruidora. A mitologia grega, sabemos, viu em Cronos a ambivalência: o pai que devora os filhos.

Dessa forma, logo percebemos, sobretudo quando chegamos à fase adulta da vida (fase que agora parece tão fora de moda!), que devemos ficar em guarda contra o tempo e o esquecimento. Foi para isso que se foram criando coisas como a escrita, os museus, as bibliotecas, os legendários baús, os monumentos, as lendas, os disquetes, a nuvem, os cartões de memória, os gravadores, a fotografia, todo um arsenal onde instalamos refúgios contra a voracidade do tempo. Queremos salvar muita coisa porque, claro, é a nossa própria identidade que estamos salvando. Mas, junto a cada um de nós, há um ralo a sugar o que vivemos: discreto ou ruidoso, nos impõe um impertinente e permanente adeus.

No Brasil, vira e mexe, a luta pela memória volta ao noticiário. Se baixarmos a guarda, logo chafurdaremos em ruínas. Em alguns casos, talvez nem ruínas sobrem. Somos um país de esquecidos. Quase que lutamos não pela memória, mas pelo esquecimento, levando à boca voraz do tempo nossas obras, nossos valores. Profissionalmente, ao trabalhar com a memória de instituições públicas e privadas, ficamos várias vezes chocado com o descaso com relação à memória e à própria história. É que estavam perdidas para sempre informações vitais. A propósito, no Brasil, parece que se leva muito a sério a expressão “arquivo morto”; muitas vezes nada tão morto, uma espécie de cemitério intruso, um inquilino desprezível a tomar os cômodos da casa… Imaginem que coisa inútil! Enfim, pensa-se em tudo, menos na preservação da memória. Esta não tem onde cair morta. E quando nela se pensa logo vemos no brilho fugaz da reverência a crepitação do fogo que fará seu trabalho de esquecimento.

Vira e mexe, dizíamos, sobe um clamor do noticiário: herdeiros e legatários sofrem para salvar da ruína obras e acervos preciosos. Obras que qualquer país minimamente civilizado tem a obrigação de preservar para as gerações futuras. Em busca de abrigo, as famílias desoladas batem às portas em triste romaria. Clamam por espaços, por cuidados que mitiguem o abandono e o descaso. É filme conhecido, e é tanto mais constrangedor quanto se sabe que lagartos no poder não podem nunca amar a cultura, tampouco a ciência.

No momento, lemos no noticiário do Sudeste a mesma velha notícia: a de herdeiros que não têm como preservar um valioso patrimônio. (O Brasil se tornou um país de notícias velhas. Quando não são velhas, são falsas!) Sem investirmos em educação de forma continuada e consistente, como poderemos formar técnicos e guardiães que preservem e amem a memória? Como teremos aquele orgulho de cuidar de arquivos e velhos papéis que o poeta e documentalista Mauro Mota tanto gostava de exaltar?; aquela vibração gilbertofreyriana de quem vê “[…] um passado que se estuda tocando em nervos; um passado que emenda com a vida de cada um; uma aventura de sensibilidade, não apenas um esforço de pesquisa pelos arquivos”.

Ao contrário de muitos países, pouco contamos com a nossa elite para a preservação de qualquer memória, pois, como diria o próprio Freyre, é composta de uns “ignorantões”, gente que tem apenas dinheiro e que ainda economiza no verniz civilizatório. Uma elite danosa ao País, como, por sua vez, sugeria o eloquente e comunicativo Darcy Ribeiro, que a espinafrava não sem razão. Que país é este? País da imprensa tardia. País da universidade tardia. País que paradoxalmente teve um imperador que gostaria de ter sido professor e que era mais republicano que muitos republicanos. Quanta ironia um país pode aguentar? Imaginamos que o golpe da maioridade golpeou para sempre o nosso monarca. Injetaram-lhe precocemente a própria velhice. Chega de golpes neste país de tão longa tradição golpista.

Entre nós, toda memória é quase ruína e luta angustiosamente para não ser total esquecimento. Cinematecas, pinacotecas, bibliotecas, museus, monumentos arquitetônicos, logradouros, sítios históricos e arqueológicos, tudo enfim que nos traduz como povo e nação é sempre de uma vulnerabilidade inequívoca. Há exceções, mas nenhuma cultura nacional deveria viver de exceção.

Infelizmente a cultura, que tanto requer memória, é uma espécie de prima pobre para uma elite indiferente a seu valor. O tempo, ai de nós, não é o único inimigo, também o governo pode ser um inimigo, também quem está ao nosso lado pode estar sendo cúmplice do esquecimento. Quantas platitudes, dirão vocês! Mas a repetição é uma gota que cava a pedra. “Gutta cavat lapidem non vi sed saepe cadendo”.