Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate[1]. A frase que Dante cravou no portal do inferno dá bem a medida da nossa veleidade em esperar mais alguma atitude digna do nosso STF. Ele agora é como um morto cujas exéquias cumpre apenas celebrar. O ato final, ignominioso, acaba de consumar-se esta semana.
O juiz Sérgio Moro acaba de ser considerado suspeito na condução de processo condenatório do ex-presidente Lula, em julgamento de habeas corpus impetrado por seus defensores, pendente de decisão há cerca de dois anos. Decisão inusitada, extravagante, que só se explica por motivações sombrias, jamais confessadas ou assumidas.
Em primeiro lugar, é estranho que um habeas corpus, reconhecido como um “remédio heroico” contra a injustiça de prisões arbitrárias, em que não há a chamada “dilação probatória” nem se dá ao suposto coator oportunidade de defesa, tenha demorado tanto tempo para ser julgado. Isto se deveu ao pedido de vistas do ministro relator Gilmar Mendes, formulado quando a votação da Turma julgadora, com os votos dos seus colegas Fachin e Carmen Lúcia, ameaçava consumar-se em desfavor dos impetrantes, com o voto pendente do ministro Celso de Melo. Gilmar e Lewandowski, velhas raposas, não confiavam no voto do decano do STF, e esperaram sua aposentadoria, já anunciada. É notório que os pedidos de vistas são usados pelos ministros como pura manobra protelatória, quando lhes convém.
A decisão de Fachin, em outro processo, anulando decisões anteriores contra Lula por questão de incompetência de foro, e, em consequência, declarando a perda de objeto do habeas corpus, precipitou o retorno do “remédio heroico” do seu sono nas gavetas, por inconformação de Gilmar Mendes. Agora, com a posse do substituto de Celso de Melo, havia chance de conseguir seu objetivo: liquidar Sérgio Moro e sua criação, a Lava Jato, pela suspeição no julgamento do ex-presidente.
Aparentemente, a posição bem fundamentada do novo ministro, em favor de Moro, não era esperada, pois provocou reação frenética, até mesmo injuriosa, de Gilmar. Mas a ministra Carmen Lúcia, talvez por melindres decorrentes de conversas entre procuradores, ilegalmente gravadas e levadas a público, entendeu de mudar seu voto, assegurando a vitória dos algozes do juiz e da Lava Jato. As alegações da ministra – de que fatos novos, de seu desconhecimento, haviam surgido – foram prontamente refutadas por Fachin: não havia novidade nenhuma. E a respeito dela só nos resta recorrer à observação de Aparício Torelly, o Barão de Itararé, decano do humorismo inteligente no Brasil: de onde menos se espera…daí é que não vem nada mesmo.
E agora? Não adianta a nossa pobre ministra insistir que a sua posição deveria entender-se somente em relação àquela contenda, não afetando as dezenas, talvez centenas, de decisões de Sérgio Moro, nos processos da Lava Jato. A condição de “suspeito” pode ser alegada – e certamente será – por todos os condenados pela operação: delações premiadas serão invalidadas, bilhões desviados e recolhidos ao Tesouro podem voltar para as mãos dos peculatários.
O STF, portanto, assume a sua morte moral. Não se pode dele esperar mais nada, como corte suprema do país e defensor da Constituição. Como será o amanhã? O que irá nos acontecer? Responda quem souber.
[1] “Deixai toda a esperança, ó vós que entrais” in A Divina Comédia – Dante.
Elegante, porém merecia ser mais incisivo.
O STF fabricou uma mina de ouro para advogados. Cada um dos muitos condenados pela Lava Jato vão apelar para ser também considerado perseguido por um juíz que recebeu o carimbo de parcial. Inclusive os réus confessos que devolveram propinas poderão alegar que foram coagidos pelo juíz. Todos têm todo direito de pedirem indenizações pelo que sofreram. A hipótese que a decisão é limitada ao caso do Presidente Lula serviu para abrir a mina de outo. Se tivesse validade para todos, os condenados já teriam seus direiros assegurados, não precisariam pagar advogados. Sem esta garantia prévia, abriu-se a mina e vai começar a corrida do ouro.
A Lava Jato, o juiz Moro e a prisão em segunda instância mostraram ao cidadão “comum” que a lei pode ser, de direito e de fato, igual para todos.
A “morte moral” do STF põe abaixo a tênue crença dos brasileiros em uma Justiça digna e imparcial.
Parabéns à Revista Será? pela altivez do seu editorial.
Lamento a posição unilateral e pouco ponderada do editorial da revista. Todas as ações anticonstitucionais da Lava Jato foram esquecidas por quem o escreveu. Texto apressado e superficial.
Não vou cantar uma nênia. Vou esperar a próxima reunião dos onze “catimbeiros”. Parece-me exagero declarar morto o STF. Ainda quero o STF vivo para fazer cumprir a Constituição. Mas com decisões do plenário todo. Acho mais apropriado o diagnóstico de que o STF se enredou em sua “catimba constitucional” (cf. explicou Rubens Glezer em livro publicado ano passado com esse título). Não tenho respeito pela última decisão do STF, e não é porque eu queira Lula preso, e sim pelo conjunto das consequências que os “catimbeiros” simplesmente ignoraram. Tampouco respeitaria decisão que fosse a oposta, como chegou a ser antes de uma Ministra que já havia votado mudar a opinião de 3 anos antes. Agora, vários anos depois, é que pretendem falar sobre parcialidade? Porque não olharam em 2017? Indício houve. No mínimo a espetacularização. E alertas também. Terão votado agora para recuperar a imagem perante uma opinião pública que quer Lula elegível? Ou terá sido para agradar certos parlamentares como o exultante Presidente da Câmara Artur Lira? E se tivessem votado o contrário seria por acharem que Lula deveria ficar fora do páreo, como resolveram em outras votações ou adiamentos? O STF perdeu a respeitabilidade técnica de quem é encarregado de fazer cumprir a Constituição e as leis. Vota ao sabor dos interesses e conveniências políticas dos seus Ministros. O voto depende do tempo, da decisão monocrática do momento, da turma ser esta ou aquela, sem coerência, não forma jurisprudência e espalha incerteza, alguns Ministros até jogam para a plateia que participa do flaflu. Segundo Glezer “O diagnóstico de que o STF se tornou cada vez mais ‘catimbeiro’ ao longo dos últimos anos não é um problema apenas para o Tribunal. Essa é uma conduta que coloca em risco a própria democracia brasileira.”