A pandemia do novo coronavírus veio dar um novo relevo a um medo histórico da humanidade: o medo da morte. Além disso, como se não bastasse, nos subtraiu o ritual de passagem que é a despedida pessoal dos que se vão. Ritual agora de todo morto e ausente por significar aglomeração. Sim, refiro-me aos velórios. Velórios que, numa civilização que joga a morte para baixo do tapete, são uma última proximidade, ainda que indesejada, com a morte em si mesma, com uma forma desconhecida de estar no mundo: sem vida, sem linguagem, sem calor, algumas vezes sem rosto, algumas vezes sem o próprio corpo que somos nós mesmos.
Consta que o epitáfio de Maurício de Nassau diz que “A morte é a última vaidade do homem”. Pois bem, o novo coronavírus nos levou essa vaidade, pelo menos em parte, pelo menos no que toca aos velórios. É claro que os mais vaidosos também são mais vaidosos na morte. Mas mesmo aqueles menos vaidosos talvez amem ocupar a imaginação com um generoso ritual de passagem. Lá, no velório, estarão parentes e amigos, os mais chegados da família, os gratos e até os ingratos, quem sabe um sacerdote para tornar menos árido o caminho no além-túmulo. Escusado dizer: velórios há que são, como no mais profundo sertão, verdadeiras festas, com encontros e reencontros ao redor do morto, performances musicais, fofocas, por vezes até palco de flertes a que não se pôde resistir. Mas o morto, quem pode negar?, é o suposto centro das atenções e dos respeitos.
Com Quincas Berro DÁgua, em sua primeira morte, também foi assim, mas com uma aventura tão mágica quanto inusitada. Dentre tantas histórias que escreveu, Jorge Amado esteve inspiradíssimo no breve texto ficcional “A morte e a morte de Quincas Berro Dágua”. Conto? Novela? Pouco importa. Há textos brevíssimos que são verdadeiras obras-primas da literatura. É o caso desse antológico texto que também é dedicado ao poeta pernambucano Carlos Pena Filho.
Já na epígrafe da novela, destaca-se, com originalidade, uma frase da própria personagem principal e tema da narrativa: “’Cada qual cuide de seu enterro, impossível não há’ (frase derradeira de Quincas Berro Dágua segundo Quitéria, que estava ao seu lado)”. Aí está, de logo, um bom slogan fúnebre para estes duros tempos pandêmicos, que não nos deixa, a vivos e mortos, o alívio e o conforto de um simpático e digno velório.
O enredo de “Quincas” é simples, o que contrasta com a densidade de sua poesia e de seu inspirado teor humano. Será possivelmente o mais poético dos textos ficcionais de Jorge Amado. Quincas, nos diz o narrador, é o “antigo e respeitável Joaquim Soares da Cunha, de boa família, exemplar funcionário da Mesa de Rendas Estadual”, que, uma vez aposentado aos 50 anos, entrega-se, numa guinada radical, à vida boêmia e malandra de Salvador da Bahia. Transforma-se em Quincas Berro Dágua: livre, divertido, amoroso, governado pelos prazeres da vida e apreciador de uma boa cachaça, como, de resto, cabe a um bom malandro. Um malandro do bem como o pinta o autor. Aliás, seu apelido vem da ocasião em que, enganado, bebeu água por aguardente e deu um berro de tremenda revolta! Mas eis que subitamente o estimado e popular Quincas bate as botas, embora essa morte não seja sua morte definitiva, como sugere o próprio título do livro.
Em homenagem ao querido finado, amigos e amigas das ruas, dos becos, dos botecos e dos bordéis da Bahia chegam para resgatá-lo da condição burocrática e oficial de um velório solenemente familiar. Então surge o primado da poesia, a força do lirismo. Seus amigos do povo o levam, como se vivo estivesse, para uma peixada imperdível. Ressurge da morte austera de pequeno burguês da classe média, pela força da amizade, o malandro simpático e sensual, o amigo fraterno de todas as horas, o amante do mar… E é como amante e amado que, em meio a uma tempestade no mar, ele morrerá pela segunda vez, dessa feita como um libertário que no fundo era, conforme registra, num ponto-final à história, “um trovador do Mercado”:
“No meio da confusão
Ouviu-se Quincas dizer:
‘— Me enterro como entender
Na hora que resolver.
Podem guardar seu caixão
Pra melhor ocasião.
Não vou deixar me prender
Em cova rasa no chão’
E foi impossível saber
O resto de sua oração.”
Mas sua amante, Quitéria, ouviu e guardou suas últimas palavras: “Cada qual cuide de seu enterro, impossível não há”.
Com certeza, os mortos brasileiros da Covid, num país fantástico e cruel, não serão, como Quincas, ressuscitados e resgatados pelos amigos, muito menos terão direito a uma segunda morte, libertadora e poética. Sem velório, sem despedida, em terrível solidão, os moribundos e mortos da Covid têm uma única e dura morte: a que lhes destinou um país a que faltou humanidade e governo numa das piores horas de sua história.
Santa indignação. Em uma crônica bela e dolorosa. Mas……… apesar de tudo aglomerações continuaram, às vezes absolutamente inevitáveis, outras vezes perfeitamente desnecessárias.
Obrigado, Helga.
Seu elogio é um santo refrigério nesses dias de tanto desalento.
Abraço