Como um pastor no púlpito da sua Igreja, o chefe da Advocacia Geral da União, André Mendonça, citou a Bíblia várias vezes como fundamento, em defesa da liberação dos cultos e atividades religiosas, que estava em discussão no Supremo Tribunal Federal, para dirimir um conflito entre dois ministros, em relação ao direito de governadores e prefeitos suspenderem aglomerações em atividades religiosas.
“Sobre essas medidas que estão sendo adotadas regionalmente, disse o chefe da AGU, não há cristianismo sem vida em comunidade, sem a casa de Deus e sem o ‘dia do Senhor’”.
Contestando também a decisão dos governantes, o Procurador Geral da República, Augusto Aras, afirmou que a Constituição assegura “o livre exercício dos cultos religiosos” e o direito de as pessoas professarem a sua fé, mas terminou caindo na mesma argumentação religiosa: “A ciência salva vidas; a fé também”. Não, senhor procurador. A ciência salva vidas, a fé pode confortar e ajudar espiritualmente os enfermos, mas não salva vidas.
Por outro lado, mais importante do que salvar vidas é evitar a propagação do vírus que está levando à morte centenas de milhares de brasileiros. E a única forma de impedir a contaminação são os cuidados com a higiene e a proibição da aglomeração das pessoas nos espaços públicos e privados, principalmente em ambientes fechados, como as igrejas.
A decisão de autoridades políticas locais, de suspensão transitória das manifestações religiosas coletivas, não viola a liberdade religiosa, não impede ninguém de processar a sua fé, e é fundamental para conter o desastre sanitário que está vivendo o país. A restrição à prática religiosa comunitária não impede que os religiosos de qualquer credo (não apenas das vertentes cristãs) professem livremente sua fé, tanto na meditação e nas orações individuais, quanto mesmo em formas amplamente utilizadas de cultos televisivos.
Ao contrário do pastor da AGU, o padre Júlio Lancellotti afirma que os cristãos não precisam ir ao templo para demonstrar sua fé e seu testemunho de Jesus, e que muita gente “vai ao templo para testemunhar o lucro”. O confinamento social neste momento dramático do Brasil, incluindo a suspensão de atividades coletivas, é um gesto essencialmente humanista, que deveria, portanto, ser defendido por todas as religiões.
O Editorial tem o tom certo, democrático, defende a vida, não critica a religiosidade, apenas as aglomerações que sabidamente aceleram a circulação do coronavirus. Mas a campanha dos empresários da fé pela abertura das igrejas usou textos bíblicos contra o STF para ocultar motivos mais terrenos: vivem do dízimo e do mercado de consumo da fé, que tornou vários desses pastores milionários em pouco tempo.
Como disse Eça de Queiroz, procura-se esconder a nudez forte da verdade sob o manto diáfano da fantasia.