Homem solitário – autor desconhecido

 

Hoje fui dar um passeio no Centro do Recife. Quando criança e adolescente, era lá que me distraía. Muito embora toda caminhada terminasse na Livro 7, era enorme o ziguezague que eu fazia pelas ruas. O que buscava hoje? Um recado subliminar, uma mensagem, um indício de que estou pronto, interiormente, para mergulhar na cidade, se resolver ficar aqui um ano ou dois – a partir de junho. Alugaria um apartamento num bairro bem recifense, traria minhas coisas de São Paulo, consolidaria com as outras daqui e, pela primeira vez em mais de 40 anos, viraria um cidadão local. Ficaria aqui até que a pandemia sumisse do horizonte e até que se levantassem todas as barreiras à vida normal. Nesse longo intervalo, faria um check up de regra. Seria um desses caras que andam com aqueles envelopes de exame embaixo do braço, indo de um médico para outro até ouvir que parasse de buscar pelo em ovo, que estou tão em forma quanto poderia estar. Levaria uma vida mais reclusa e faria um esforço desesperado para ser tolerante para com as alas da família cuja ocupação preferida é dar palpite na vida alheia. Em uma semana, essa bancada já tentou se apossar de minha vida duas vezes. Para eles, nunca estive tão frágil. Logo, nunca fui presa tão fácil para virar um cara do jeito que eles gostam, um “normal”. Pode parecer incrível, mas essas pessoas já me aborreceram cruelmente. O desrespeito às individualidades é colossal. Se tiver que convalescer numa cama de hospital e receber certas visitas, prefiro morrer.

Estando aqui, iria regularmente a São Paulo. Iria a todos os cinemas que quisesse e reveria um ou outro amigo que estivesse vivendo uma vida mais normal, sem restrições a uma cerveja. Quando preenchesse uma ficha de hotel, colocaria um endereço do Recife, o que deve ser uma sensação única. Logo eu que cheguei a pensar que isso jamais aconteceria. Sentei num banco de praça com meia bunda para enxugar o suor, passar gel nas mãos e ver a paisagem. E se fizesse isso de São Paulo, apenas invertendo as mãos? Que tal se ficasse voltando aqui como o visitante que sempre fui? Isolado por isolado, teria a vida cultural de São Paulo ao meu lado. Não seria uma vida tão espartana quanto poderia ser a daqui, mas os esforços de adaptação seriam mínimos. À tarde, fui falar com um amigo, um adorável gozador. “Fica no meio do caminho, Dourado. Vai para Belo Horizonte. Fica a um pulo do Rio, de São Paulo e de um bocado de cidadezinha aprazível. É uma capital que tem delícias de província, gente legal.” Achei graça. É uma das poucas capitais onde não sei rodar. Fico perdido, não sei me locomover lá. Por outro lado, tem um clima aprazível. “Dá certo não, Claudio. Prefiro pessoas mais expansivas. Tenho muita dificuldade de entender os mineiros. Os amigos de lá que eu fiz sempre foram um enigma. Gente desconfiada. Tem um que eu nunca soube se era Cruzeiro ou Atlético. Não fosse meio contramão, me identifico mais com Porto Alegre.” Atravessei mais duas pontes e tomei um táxi para meu pequeno refúgio. Com o mundo aberto de antes, o moral estaria mais elevado.

Antes, sonhar era livre. Todo lugar tem seus pontos positivos e negativos. Japão e Suíça são proibitivos. Escandinávia, idem. Já não tenho idade para nenhum país africano. O Sudeste da Ásia é muito quente. Meu estilo de vida combina mais com o dos países latinos europeus. Alemanha e Inglaterra também seriam boas opções. Os Estados Unidos estão fora de questão. Só se fosse em Nova York. Sobre Garanhuns, só me desanimaram. Vá para onde for, o mundo está mesmo desfigurado. O meu grande desafio é encará-lo sem remédio, sem perder o pique. O Brasil atenta contra a esperança. Brasília é um tapa na cara do otimismo. Fico me perguntando o que poderia mudar radicalmente meu estado de espírito. Nem um prêmio de loteria mudaria grande coisa. Para quem é filho dileto da liberdade, nada nem ninguém pode substituí-la. No mais, ter dois grandes amigos doentes – somando-se aos tantos que já morreram -, é fonte de grande angústia. Chegando ao hotel, li o e-mail de um amigo. “Ao ler seus textos, vejo que você sofre com essa divisão e levanta ódios entre seus amigos. Já entendi que, com os brasileiros, sobretudo com os pernambucanos, não dá pra falar que o de fora é melhor… Há, sim, os que concordam e apoiam, mas uma grande parte fica ofendida e parece que estamos cometendo um crime ao falar das mazelas do Brasil em comparação a outro país…” Acho que as luzes virão dos amigos. Muitos deles talvez eu ainda nem conheça. Eu estava achando que dos 60 em diante a vida atravessaria seu melhor momento.

Se pensar bem, quase acertei. Não estava errado. Mas esse vírus vai catalisar um redesenho do mundo. Eu só não tenho certeza se pertenço a este amanhã. Só se me derem um indulto para servir de pesquisa, como relíquia da outra era. O exercício que mais faço é o de me preparar para o pior. Isso não me impede de rir e de tentar fazer o que precisa ser feito. Não me impede de, lá no fundo, aquecer a alma com a perspectiva de viajar, de achar um lugarzinho no mundo para ver como se desdobram os próximos capítulos. Agora começa o massacre do noticiário. Queria ser desses que o ignoram e mergulham num livro – como os três ou quatro que peguei da minha biblioteca daqui. Mas logo me desconcentro. Isso porque aflora a raiva, a revolta muda. Estamos a caminho dos 400 mil mortos. Os americanos se desvencilharam da nulidade que foi Trump por causa do coronavírus. Acontecerá o mesmo aqui? Provavelmente. Mas vê-se que as pessoas estão muito sofridas, machucadas e amargas. Poucas coisas me deprimem tanto quanto lives, estádios de futebol vazios e as placas de “fechado definitivamente” nas portas dos comércios. O mais provável é que eu não fique em Pernambuco. De São Paulo, sonho com o calor humano daqui. Aqui, sonho com a impessoalidade de São Paulo. Em ambas, sonho com um pouco de paz. Em fazer o que nunca fiz para consegui-la: viver, simplesmente viver. Viver uma vida simples num cenário inspirador. Nesse ponto, sem saber, os 371 dias consecutivos que vivi em Paris reuniam quase tudo. Bastava abrir os cafés.

No fundo, lá no fundo, sou um out of place, um inadaptado. Hoje vou para a cama cedo, ouvindo o farfalhar dos coqueiros de Boa Viagem. Logo essa brisa será também passado. O remédio já começa a fazer efeito. Não é possível que hoje passe outra noite insone. Se o remédio falhar, um cansativo jogo do Sport será um sonífero potente.