The Battle of Anghiar – a study by Leonardo da Vinci.

 

1 – Hoje acordei num ambiente oriental. Desde a noite de ontem, respiro Ásia – cinema, literatura, comida e pensamentos. Para mim, é o mais fascinante dos continentes. Mas não é todo mundo que gosta de lá. Quando botei os pés no Extremo Oriente pela primeira vez, tinha 26 anos. Era 1984 e cheguei lá pela rota do Pacífico. Era um sonho antigo. Quando criança, havia poucos japoneses em Pernambuco. Um deles, sorveteiro famoso, suicidou-se por conta das perseguições da Segunda Guerra. Mamãe conhecia as filhas dele, coitadas. Eu ria dos nomes: Tokiko e Aruka. Aos 10 anos, viemos a São Paulo por uns dias, e, aí sim, vi muito japonês. Quando assistia à propaganda da Varig, pensava: um dia vou lá. Não 1 vez, não 2, não 10, mas talvez 100 vezes. Pois aconteceu. Quando cheguei a Tóquio e me alojei no Keio Plaza, de Shinjuku, eu me senti o mais feliz dos homens. Sendo sábado, fui passear em volta do Palácio Imperial. Não havia rastro de uma asa de borboleta no chão. Tudo era impecável. Quando encarei minha primeira reunião de negócios com os locais, fui simpático, falei com clareza, ouvi e prestei atenção. Aquilo tinha que dar certo. Eu queria ter um bom pretexto para voltar lá pelo menos umas 3 vezes por ano. Entrei no jogo. Tudo neles me interessava. Em São Paulo, toda semana estava na Liberdade – tomando saquê e tentando entender os códigos intrincados. Passados tantos anos, mais de 100 viagens depois, não posso dizer que os conheço. Quem conhece alguém pra valer? Mas aprendi o bastante para entendê-los.

2 – Mas ora, quem ia ao Japão atrás de negócios, tinha que ir também à Coreia. Era um contraste. Você saía do aeroporto de Narita, voava um par de horas e chegava a um país que parecia adormecido. Era um choque gritante. Imagine você sair de São Paulo e chegar a Assunção, no Paraguai. A menos que seja louco, você vai perceber que mudaram as escalas. Hospedado no Seoul Plaza, tudo me parecia provinciano. A exemplo dos japoneses, eles eram reativos, introvertidos e também gostavam de fazer elogios e de fingir humildade. De cara, percebi que essa história de baixar a cabeça e fazer de conta que é fraco, pequeno e precário era um traço cultural. Derivava, evidentemente, da necessidade de aprender, de angariar a simpatia do parceiro internacional – eu, no caso. Por que não ajudar? Por que não criar ali também um mercado? Acaso não eram gentis e aplicados? Os japoneses eram mais finos, mais oblíquos. Quando sorriam, os músculos da barriga não balançavam. Já os coreanos eram mais horizontais. Bebiam tanto quanto os japoneses, mas então começavam a professar estranhos hábitos. Um deles, impensável nos dias de hoje, era beber no copo uns dos outros. A que se devia coisa tão tribal? A mostrar confiança numa prova de que não se temia o envenenamento. As bebedeiras eram cheias de “soul searching”. Pudera: a fronteira com os irmãos-inimigos ficava a poucos quilômetros da capital. Nas Olimpíadas, em 1988, queimei a língua. De Paraguai, tinham virado um Chile. Opa!.

3 – Mas eu precisava de muito mais. O que seria daquelas experiências se eu não começasse a trabalhar com os chineses? Era a mesma coisa que ter negócios com o Canadá e não tê-los com os Estados Unidos. Comecei por Taiwan, onde não precisava de carta-convite para desbravar o mercado. Tampouco teria um intérprete nos meus calcanhares, observando meus movimentos. O Japão continuava sendo o país preferido, mas eu estava ali para conseguir contratos, para transformar minhas palavras em dinheiro. Se não fizesse isso, como é que os acionistas me autorizariam a fazer aquelas viagens caríssimas, cheio de confortos e amenidades, paparicado pelas melhores tripulações do mundo como se fosse um sultão, e não um rapaz de Garanhuns? Em Taipé, fechei mais contratos do que em Seul e em Tóquio combinados. O fabricante local do meu produto acusou o golpe e veio me ver na segunda visita. Então se saiu com ameaças de retaliação. Prometi confidencialidade, afirmei que doravante eu os consultaria sempre que fosse dar um passo e fiz de conta que aceitava jogar com cartas marcadas. Mas senti ali que a força estava do nosso lado e que não precisava poupá-lo porque ele não era páreo para nós. Peguei um cinzeiro chique embrulhado para presente e lhe dei como prova de amizade e de agradecimento pela consideração. Fez ele bem em duvidar das minhas intenções. Instruí meu agente: “Ataque todas as posições. Eles estão quebrados. Se não os matarmos, outros matam. Eles estão com medo.”

4 – Então me aproximei em definitivo do mundo chinês. Quando o avião da Cathay se inclinou sobre a asa esquerda e fez uma manobra assustadora para pousar em Hong Kong, exultei. O que era aquilo? Amei aquela cidade no primeiro instante. Fiquei em Kowloon, no rebuliço da Nathan Road, numa suíte do Hyatt. Fechei uns contratos de exportação com os fabricantes de lacas do rio das Pérolas. Quando Wardley Cheng me apontou umas montanhas e disse que aquilo era a China de verdade – o Mainland, Chung-Kuo -, eu tremi. Se uns dizem que no próximo ano querem estar em Jerusalém, eu pensei o mesmo sobre Pequim, Xangai e Cantão. Eu queria atravessar a chamada “Cortina de bambu”. Ainda se passariam 3 anos até que chegasse à capital, pouco antes da brutal repressão da praça da Paz Celestial. Enquanto o momento não vinha, eu tentava aprender mais sobre a China. E vi que ela era muitas. Nas Filipinas, os empresários que davam as cartas eram chineses. Na Indonésia, nem se fala. Meu amigo Hermann Moeliana, um finérrimo homem de negócios, era, na verdade, chinês. Em Cingapura, todos os “big shots” eram chineses. Os malaios e os indianos trabalhavam para eles. Chegando à Malásia, vi que o padrão se repetia. Até na Tailândia, no Sião jamais colonizado, sempre havia um chinês vendendo dinheiro, prestígio, acessos e contatos. E já nem falo da imensa diáspora chinesa que se espalhava pelo planeta. Em Pequim, reinava então um homem que mudaria o curso da história do mundo: Deng-Xiaoping.

5 – Pois bem, quando consegui entrar no “Império do Meio”, numa manhã em que a neve se acumulava nos hutongs, já reverberava ali uma nova “Zeitgeist” – ou “espírito do tempo”. Isso porque aquele homem de 1,50 m de altura, fumante inveterado, sobrevivente a todos os expurgos imagináveis, haveria de decretar que “enriquecer é glorioso”. Ora, isso em Miami todo mundo aprende no jardim da infância. Mas quando grassa no centro nevrálgico do maior partido comunista do planeta, temos um fato novo. Confrontado com essa aparente contradição, o pequeno mandarim disse que pouco importava se aquilo era um capitalismo de Estado. Para que suas centenas de milhões de governados entendessem o recado, proferiu: “Não importa a cor do gato. Importante é que ele mate os ratos.” Pouco tempo depois, aquela modorra de ciclistas com roupa padronizada daria lugar a uma das maiores reviravoltas de todos os tempos. De país humilhado e escorraçado, a China começou a despontar como a fábrica do mundo. Meu pai vibrou, perto do fim da vida, quando soube que eu conhecera em Xangai a praça onde se lia: “Aqui é proibido o passeio de cachorros e chineses”. Então todas as engrenagens entraram em funcionamento e as cabeças pensantes ressuscitaram a frase de Napoleão Bonaparte: “Quando a China despertar, o mundo tremerá.”  Eis a realidade do mundo hoje. A China é uma megapotência econômica e militar e exige ser tratada como tal porque até um humilde chinês da rua quer que assim seja.

6 – A China é o epicentro das ondas que sacodem o mundo. Cada vez mais, tem controle sobre elas. Quando erra a mão, se apressa em corrigir e, de pária, vira modelo. É isso que pede a postura imperial. Ponto de partida da epidemia, hoje se sabe que um pouco de transparência em fevereiro de 2020 poderia ter contido uma praga planetária. Mas essa discussão cabe aos organismos multilaterais. Depois de uma resposta interna rápida e radical, a China espera ser tratada com reverência e admiração. Podem até não lhe agradecer, mas não a demonizem. Mesmo porque meio mundo precisa de insumos chineses para fazer a vacina e imunizar a população. No caso do Brasil, a palavra esperança se fundiu com a palavra China. Sem eles, nós estaríamos no coração da treva e da desesperança. Para nossa infelicidade, tivemos até pouco tempo um chanceler que rasgou o manual de como lidar com Pequim. Querendo mostrar serviço ao chefe, que fez apostas à altura da ignorância e do primarismo, admoestou a China. Ora, os australianos que o digam: quando a China quer castigar, ela não vai aos jornais nem aos tribunais. Ela boicota, ela sabota, ela ignora. Acaso ninguém nunca ouviu falar de tortura chinesa? Daquela gota d ‘água que passa a noite caindo a cada 4 segundos, levando o prisioneiro à loucura? Bastou um transbordamento para que a China sobretaxasse os produtos australianos: vinhos, carne e lagosta. E aumentasse as importações de carvão da Colômbia. Sedentos de insumos para imunizantes, não os recebemos.

7 – E por quê, se as Filipinas, a Indonésia e o Chile o recebem regularmente? Procede a China dizer que estão em falta? Insultada pela junta familiar que ocupa as dependências do Planalto, os 5000 anos de história da China nos contemplam com a severidade do mestre que resolveu castigar o aprendiz rebelde e desrespeitoso. Para Brasília, menos mal que sintam estar sabotando São Paulo, o Governador, Dimas Covas e o Butantã.  Mas como ficam os milhões de brasileiros à mercê de entregas de outras fontes no segundo semestre? A China anda em bloco. O dirigismo estatal é uma realidade. Como tal, os dirigentes exigem ser tratados com deferência. As aparências contam muito. Mais de um bilhão de chineses esperam de Pequim uma postura altiva. Os chineses só acreditam em relações desiguais. O igualitarismo é para inglês ver. O mais forte manda, o mais fraco obedece. O irmão mais velho fala, o mais novo murcha as orelhas. O velho decreta, o jovem acata. É puro Confúcio. A China é um estado de alma. Evitar confronto direto é prova de maturidade e vale respeito. A busca da harmonia na essência e na forma obedece a um protocolo quase imperial. Não se espera que Brasília leia “On China”, de Henry Kissinger, antes de soltar suas diatribes e vitupérios no Twitter. Mas estamos na estranha posição de rogar por clemência e misericórdia por conta da ignorância abissal de nossos dirigentes. Se sequer os Estados Unidos podem sair de um embate com a China sem arranhões, o que dizer de nós?

8 – Venho de um tempo em que a diplomacia corporativa era o que nos livrava dos caminhos erráticos do Brasil dos anos 80 e 90. Hoje depositamos nossas fichas na força da diplomacia subnacional, tocada pelos estados. Sem ela, seremos presa fácil para retaliações em que só temos a perder. Se um dia a China tiver que ser sancionada, isso deverá vir do concerto das nações. Não de um país que tem lugar garantido no pódio de pior gestor da crise sanitária no mundo.