Clemente Rosas

Passeata dos cem mil.

Talvez a proximidade do cinquentenário dos acontecimentos de 1968, “o ano que não terminou”, como o descreveu Zuenir Ventura em seu livro, tenha motivado intelectuais da minha terra a colher depoimentos dos participantes das agitações estudantis na Paraíba, e editar “O Ano que Ficou – 1968 – Memórias Afetivas”, a cujo lançamento compareci.  Convidado pelos organizadores Washington Rocha e Telma Dias Fernandes, participei também de um debate a respeito, ao lado do historiador José Octávio de Arruda Mello e da professora Lourdes Meira.  Minhas observações nessa oportunidade vão aqui rememoradas, com alguns complementos.

Meu tempo de militância estudantil foi bem anterior – anos 1961/62 – em clima de liberdade e prestígio para a UNE, nossa entidade representativa.  Tínhamos fácil acesso ao Presidente da República, os ministros da educação nos convocavam para conversas, políticos nos cortejavam, escritores e artistas como Ferreira Gullar, Oduvaldo Viana Filho, Cacá Diegues, Leon Hirzmann, Arnaldo Jabor, viviam próximos de nós e nos assessoravam. Na crise da renúncia de Jânio Quadros, nossa sede ficou conhecida como “a casa da resistência democrática”.  E já no fim do mandato, de volta à Paraíba, depois de um périplo pelo mundo socialista, em congressos estudantis, cheguei a viver também um curto episódio de engalfinhamento com a polícia e prisão, quando tentamos fazer, “na marra” uma manifestação contra as ameaças americanas de invasão a Cuba.  Mas não tínhamos o poder de mobilização que os estudantes paraibanos, especialmente os secundaristas, demonstraram nos idos de 1968, talvez simplesmente por uma questão de conjuntura política.

Já casado e morando no Recife, tinha notícia dessas manifestações através da participação da minha irmã Yara, dez anos mais jovem, e do primo Eric, estudante de Medicina.  Eram mobilizações quase diárias, frementes de revolta contra o governo militar, sobretudo após a morte do estudante Edson Luís, no Rio.  O Governador do Estado, João Agripino, apesar de merecer a confiança dos militares, tinha espírito independente e preocupações democráticas.  Procurava dialogar, fazia apelos à garotada, pelo rádio, mas a indignação e a revolta da juventude eram fortes demais.  E a polícia entrava em cena.  Nem mesmo o meu amigo Paulo Pontes, homem de teatro, que lá se encontrava produzindo o espetáculo “Paraí-b-a-bá”, no modelo do “Liberdade, Liberdade”, de Flávio Rangel e Millor Fernandes, e tinha prestígio e livre acesso ao Chefe do Executivo, foi feliz na intermediação em favor dos manifestantes. Mas o povo os apoiava, acolhendo em suas casas os fugitivos, na hora da repressão.  Exemplo ilustrativo foi o da Aliança Francesa, que ficava no Parque Solon de Lucena, centro das agitações, quando a “madame” disfarçou jovens refugiadas, fazendo-as parecer pacatas alunas em classe, ante os policiais invasores.

Dos depoimentos constantes do livro, merece destaque o reconhecimento ao advogado Nizi Marinheiro, que, como Paulo Cavalcanti em Pernambuco e alguns outros Brasil afora, prestou-se a defender gratuitamente os jovens rebeldes.  E para quem não o conheceu, faço questão de registrar seu passado heroico.  Ele era sargento do Exército, e instrutor de armamentos.  Um dia, fazendo demonstração com uma granada para uma tropa de recrutas, em campo aberto, viu de repente que o pino da granada havia saltado.  Gritou para que todos se deitassem, ergueu bem alto o braço, e a granada despedaçou-lhe a mão.  Com a reforma, fez-se advogado e, sempre com o respeito dos seus conterrâneos, converteu-se em patrono de causas nobres.

Fiz, no entanto, um reparo à atitude da maioria dos depoentes.  Com a exceção de um deles – Assis Fernandes de Carvalho – não fizeram autocrítica em relação ao quixotismo – sem qualquer tom pejorativo – daqueles que, após caída a noite do AI-5 e do Decreto 477, mergulharam na clandestinidade e na luta armada.  Era evidente para os espíritos mais maduros e vividos ser aquele um descaminho, que acabou ceifando a vida de tantos idealistas.  Pela ausência de “”condições objetivas” (para usar o jargão da época), seria, como foi, um “combate nas trevas”, sem perspectivas nem esperança, apesar do heroísmo dos combatentes.  Cabe aqui a indagação do Presidente Epitácio Pessoa, ao visitar no hospital os sobreviventes do levante do Forte de Copacabana, em 1922, um deles agonizante:

– “Por que tanta bravura, por uma luta inglória?”

As memórias, como já observei em outros escritos, só têm maior valor pela sinceridade, pela isenção, até pela humildade dos seus autores.  Por isso, sugiro uma revisão de conceitos, um “mea culpa” talvez doloroso para os optantes da luta armada, naquele contexto histórico.  O Partido Comunista Brasileiro sempre defendeu a tese de que guerrilhas, rurais ou urbanas, não seriam o caminho para a reconquista do poder, no Brasil.  A linha de ação deveria ser um paciente trabalho de conscientização e mobilização das massas e formação de alianças políticas com todos os opositores do Golpe Militar, inclusive políticos liberais.  Não se tratava, pois, de derrubar a ditadura, mas de derrotá-la, como constava dos seus manifestos clandestinos da época. Escaldados com a aventura de 1935, forjados por anos de cadeia e vida subterrânea, os velhos militantes do PCB eram depreciados pelos “carbonários”, na expressão adotada por Alfredo Sirkis.  E é forçoso admitir hoje que o “Partidão” estava certo. A ditadura militar não foi derrubada: foi derrotada por um conjunto de fatores, envolvendo uma conjuntura internacional desfavorável aos regimes de exceção, um paciente trabalho de “costura” política, uma mobilização de massas sob as bandeiras das eleições diretas e da livre manifestação do pensamento.  Há que se fazer justiça àqueles que, mesmo pacíficos, pagaram alto preço pela resistência aos usurpadores do poder popular, alguns com a própria vida, como Davi Capistrano, Hiram Pereira e Luís Maranhão, mortos sem sepultura.

Por fim, com as lições recentes da História, colhidas com a queda do muro de Berlim, a dissolução da União Soviética, a unificação das duas Alemanhas, a degradação monstruosa da Coreia do Norte, a “esclerose” do regime cubano, cabe aos que preservam o sentimento da fraternidade e o sonho de uma sociedade mais justa, apesar de tudo, refletir sobre as bandeiras que lhes restam.  E a minha proposta é simples: EDUCAÇÃO.  Educação para todos, em iguais condições para os filhos dos burgueses e dos proletários, para as crianças de classe média e as dos novos deserdados das periferias urbanas.  Só se pode perseguir uma sociedade mais igualitária dando as mesmas oportunidades a todos, e não distribuindo esmolas, sem qualquer contrapartida, nem franqueando espaços àqueles que, por motivos alheios à sua vontade, não estão circunstancialmente preparados para ocupá-los.

Domínio estatal dos meios de produção, ditadura (ou, segundo Gramsci, hegemonia) do proletariado, partido único, controle das comunicações a pretexto de oposição à “imprensa burguesa”, nada disso prevalece em um mundo que está a anos-luz daquele observado pelos velhos teóricos do marxismo, há bem mais de um século.  Só o lema da educação universalizada permanece.  É a lição a ser aprendida pelos manifestantes de 1968 e pelos combatentes das trevas, a quem presto minhas reverências.